Ato perto do QG do Exército tem 240 caminhões, comida grátis e golpismo
O caminhoneiro Vagner Dávila, 36, está fora de casa há quase uma semana. Dirigiu mais de 1.500 quilômetros, desde o norte de Mato Grosso, para se juntar ao comboio de 115 caminhões que chegaram a Brasília na quarta-feira (9) para protestar contra a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O destino dos caminhoneiros foi o acampamento em frente ao quartel-general do Exército, onde mais de uma centena de donos de veículos pesados já faziam, havia alguns dias, uma vigília golpista a favor de Jair Bolsonaro (PL), primeiro presidente brasileiro que não conseguiu se reeleger. O UOL esteve durante dois dias desta semana no local de concentração dos manifestantes e contou cerca de 240 caminhões.
Parado num estacionamento militar, Dávila disse à reportagem acreditar ser possível resistir financeiramente por mais um mês na manifestação. "Depois, começa a apurar, né? Tem conta para pagar", disse.
Mas, "se precisar", ele diz que pode ficar até 1º de janeiro, data da posse de Lula. "É até resolver alguma coisa aí. Se eles falarem que não tem como ficar mais, a gente vai embora", acrescentou, dizendo ter levado "água, gelo, algumas coisas para comer".
Almoço grátis. No acampamento, grandes tendas ofereciam nesta semana almoço e outras refeições, além de café, água e frutas aos militantes. Não era preciso pagar — no local, não informaram quem financia a alimentação.
Em outros protestos, feitos em bloqueios em rodovias ao redor de Brasília, os militantes afirmaram ao UOL que empresários da região bancavam o fornecimento de alimentos e tendas.
Alguns ambulantes em frente ao QG aproveitavam o movimento para vender churrasquinho, doces, pipoca e camisas similares à da seleção brasileira. Um deles contou ter vendido mais de cem peças na quarta. O conjuntinho infantil, com camisa e calção da seleção, saía a R$ 40. Mas o vendedor dava um desconto e negociava dois deles por R$ 70.
Uma mulher viajou de Taguatinga, cidade-satélite do Distrito Federal, até o quartel com uma caixa de brigadeiros caseiros. "Vendo por R$ 5, mas hoje eu faço por R$ 4,50", afirmou ela ao oferecer o doce a uma mulher de amarelo numa barraca na Praça dos Cristais, em frente à Concha Acústica do Exército. O local serve café da tarde a todos.
Um homem com uniforme do Exército e uma camisa amarela por baixo levou três sacos de gelo num carrinho até uma barraca onde eram oferecidos lanches e almoços.
A reportagem procurou a assessoria do Exército, que não se manifestou até a publicação deste texto.
A viagem até Brasília. Dávila é solteiro e tem um filho em Campo Novo do Parecis (MT). Trabalha como motorista autônomo. O caminhão é dele, e não de uma transportadora. Mas contou que outros companheiros que saíram da sua cidade — 17 no total — atuam como funcionários das transportadoras, geralmente controladas por empresas do agronegócio.
Para participar do movimento bolsonarista, Vagner Dávila decorou seu caminhão prata com uma bandeira do Brasil e dois adesivos: "Liberdade" e "Socorro, Forças Armadas".
Desde sábado passado (5), seus colegas saíram de Campo Novo e outras cidades da região, em Mato Grosso, como Nova Mutum e Lucas do Rio Verde. Dávila e os demais motoristas pernoitaram em Cuiabá (MT).
De lá, passaram por Jataí (GO) e seguiram até Rio Verde (GO). Dávila dormiu tarde da noite com seus companheiros. Às 5h de quarta-feira, ele já estava na boleia de seu caminhão rumo à capital federal. Chegou por volta das 13h.
Rádio e 'zapi zapi'. Pelo rádio, ele recebia instruções dos companheiros do comboio. "Tem equipe lá na frente de uns caminhões, que está coordenando. Nós só seguimos atrás. No rádio e no 'zapi", explicou.
No Distrito Federal, os mais de cem motoristas — autônomos ou funcionários que cumpriam ordens dos donos de transportadoras — fizeram uma fila de cerca de quatro quilômetros entre o Riacho Fundo e o Núcleo Bandeirante.
A Polícia Militar destacou uma viatura para escoltá-los até o QG do Exército e evitar que eles rodassem pela cidade.
Eles ficaram estacionados no lado norte do Setor Militar Urbano, longe dos demais caminhões que já estavam lá antes. Dávila disse que, mesmo cansado, não conseguiu dormir.
No fim do dia, o Exército encontrou um estacionamento militar mais à frente. O comboio se dirigiu até lá com certa dificuldade, por causa do horário de pico. Alguns carros buzinavam para os caminhoneiros.
"Falaram que não era para buzinar. Eles pediram para não fazer por causa do Exército", afirmou Dávila. Depois, ele mesmo apertou a buzina um pouco, para responder aos motoristas que passavam de carro.
Chegando lá, ele conseguiu finalmente descansar.
Dormitório. O acampamento tem barracas para dormir. Alguns levaram trailers. Um homem aproveitou para colocar uma placa de venda em um dos veículos.
Um grupo de indígenas de Campo Novo do Parecis vestia camisetas amarelas, semelhantes às da seleção brasileira de futebol.
Perto dali, pessoas em uniformes pretos com a inscrição "Staff" (equipe de trabalho) se esforçavam para levantar antes de escurecer mais uma tenda, feita com estruturas de ferro trazidas em um caminhão.
Pouco trabalho. A época do ano ajuda o movimento de caminhoneiros. Em novembro, acaba o transporte de soja, milho, girassol e calcário na região de Campo Novo do Parecis, área onde o agronegócio domina a economia e a cultura.
Dávila e seus colegas dizem que já iam ficar ociosos neste mês.
Pautas golpistas. Ele falou com a reportagem minutos antes de o Ministério da Defesa divulgar um relatório que não encontrou fraude nas urnas eletrônicas. Lula teve 50,90% dos votos e Bolsonaro, 49,10%.
Não acredito que ele [Lula] fez tudo isso de votos. Tem alguma coisa errada. Não podia ter feito tudo isso de votos. Um pouco, sim, mas 60 milhões de votos?"
Vagner Dávila, caminhoneiro
Carro de som. Perto do motorista, era possível ouvir constantemente pessoas discursando nos alto-falantes de um carro de som. "Aqui tem líder?", gritou um manifestante, ouvindo um "Nããããão" como resposta.
Um homem assumiu o microfone. Ele tentava traduzir um discurso para o francês. A tradução falhou, e, em português, disse: "Desculpe". Uma mulher em seguida pediu uma oração pelo Brasil.
Em comum, todos que subiam ao palco diziam que não aceitariam Lula empossado como presidente do país.
Alexandre de Moraes. Em vários pontos de protesto visitados pelo UOL desde o término das eleições, os militantes disseram que não gostam de revelar seus nomes porque temem ser presos por ordem da Justiça. Em situações assim, o nome de Alexandre de Moraes geralmente é citado num misto de raiva e temor.
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) se tornou o "bicho papão" do bolsonarismo. Relator dos inquéritos das fake news e das milícias digitais, Moraes é chamado de ditador pelos apoiadores do presidente por causa de decisões consideradas por eles "arbitrárias".
Uma delas saiu na tarde de quinta-feira (10): a ordem era para que os caminhões fossem removidos da região do Distrito Federal. Ontem, Moraes estendeu a ordem para todo o país.
Golpismo. O movimento em frente aos quartéis é considerado de caráter golpista por questionar uma eleição legítima — desde a implantação das urnas eletrônicas, em 1996, nunca houve comprovação de fraude ou adulteração do resultado.
Assim que saiu o resultado das eleições, na noite de 30 de outubro, manifestantes passaram a bloquear rodovias pedindo até uma "intervenção federal" para impedir que Lula assuma o cargo.
Nesta semana, o presidente eleito pediu aos apoiadores de Bolsonaro que "voltem para casa".
O Código Penal proíbe incitar um golpe de Estado ou tentar abolir a democracia. "O nome correto é 'golpe de Estado' ou 'abolição violenta do Estado democrático de Direito'", disse o procurador da República Bruno Calabrich em rede social. "Em resumo: é crime e tem penas altas."
Localização. O QG do Exército fica no Setor Militar Urbano, no Plano Piloto, a área central de Brasília. De lá até a Praça dos Três Poderes são cerca de oito quilômetros (ou 16 minutos sem trânsito).
Local do acampamento é a praça em frente ao QG do Exército
PM 'blinda' locais de trabalho de Lula e Bolsonaro
A PM restringiu o acesso à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes, onde funcionam o Congresso, o Palácio do Planalto e o Supremo. A equipe de transição do presidente eleito tem feito reuniões nos órgãos da praça e no CCBB, que fica nas proximidades do lago Paranoá.
Pode ter ataque ao governo de transição? Segundo a Secretaria de Segurança Pública do DF, os caminhões não vão circular no Plano Piloto e em "outras áreas" centrais, como as proximidades dos locais onde as equipes de Lula e Bolsonaro trabalham durante o período de transição de governos.
Destacamos que os veículos ficarão estacionados, no local disponibilizado pelo CMP [Comando Militar do Planalto, órgão do Exército], e não poderão circular pelo centro da capital e outras áreas"
Nota da Secretaria de Segurança do DF
A secretaria diz que interrupções adicionais no trânsito ainda podem ser feitas. Uma rede de câmeras, drones e serviços de inteligência — como policiais à paisana, infiltrados entre os militantes — na área central ajudam no monitoramento feito pelas forças de segurança.
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