Covid: PGR de Aras ignorou normas e ampliou risco de impunidade, diz estudo

Sob o comando de Augusto Aras, a PGR (Procuradoria-Geral da República) ignorou normas sobre saúde pública e ampliou o risco de impunidade ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por atos cometidos na pandemia de covid, aponta estudo de pesquisadores da USP.

O que aconteceu

Ao todo, 61 processos foram avaliados, deste total, a PGR pediu o arquivamento de 47 deles. O estudo analisou 58 petições criminais e três inquéritos que tramitaram na Corte. A pesquisa foi liderada por Deisy Ventura, mestre e doutora em direito e professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, e foi publicada em fevereiro (leia a íntegra aqui).

Dez processos foram movidos pela própria PGR a partir do relatório final da CPI da Covid. A investigação, levada a cabo após pressões de parlamentares, terminou engavetada após a gestão Aras pedir o arquivamento da maioria dos processos.

A PGR ignorou normativas que regem obrigações de autoridades públicas em relação à atuação da pandemia, de acordo com a pesquisadora. Também tratou as ações de Bolsonaro pela ótica de uma "ação discricionária" do governo.

Sem punição. Tal entendimento utilizado por Aras, segundo o artigo, leva a um "desfiguramento dos tipos penais relativos à saúde pública", dificultando o processamento e a punição de autoridades públicas, especialmente durante emergências.

Os pareceres da PGR chegam a afirmar que o presidente tinha a sua própria lógica, a sua própria forma de perceber a resposta à covid-19. Não importa o conhecimento técnico que a área da saúde pública acumulou durante décadas, não importa o dever de basear em evidência científica. É a percepção pessoal do presidente da República que se impõe.
Deisy Ventura, professora titular da USP

O estudo cita normas que a PGR não levo em conta nos pedidos de arquivamento levados ao STF. Isso inclui, por exemplo, a Lei nº 8.080/1990, que instituiu o SUS, a Política Nacional de Vigilância em Saúde, o Plano de Resposta às Emergências em Saúde Pública e o Programa Nacional de Imunização.

Leis estipulam deveres do governo. Em linhas gerais, definem o dever da União em agir para a prevenção e a contenção de doenças em geral, especialmente a covid-19, e o dever do Ministério da Saúde de planejar e coordenar a resposta nacional à pandemia. Segundo Ventura, apesar de o Brasil contar com uma vasta regulamentação sobre medidas que devem ser adotadas em situações de emergência em saúde pública desde 2013, elas não foram postas em práticas pelo governo e não foram citadas pela PGR ao arquivar os processos.

A União tinha o dever de conter a propagação da doença e não o fez. Não é negligência, não é incompetência. É uma decisão de não conter a propagação da doença porque o governo acreditava na falsa ideia da imunidade de rebanho por contágio. [...] Não é poder discricionário. Era um dever legal conter a doença e isso não é citado pela PGR.
Deisy Ventura, professora da USP

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Os pareceres foram assinados pela então vice-procuradora-geral Lindôra Araújo, que tinha proximidade com a família Bolsonaro.

O UOL entrou em contato com a assessoria da PGR, mas tanto Lindôra quanto Aras não responderam aos pedidos da reportagem. Após a publicação do texto, Aras enviou uma nota em que afirma ter feito "um grande esforço nacional para combater a covid-19"(veja mais abaixo).

O estudo aponta que, nos pareceres, fica demonstrado um alinhamento entre a PGR e o governo. Das dez petições apresentadas pela PGR, sete delas foram arquivadas um dia depois de o presidente anunciar sua candidatura à reeleição.

Copia e cola em documentos. Os pareceres foram apresentados em bloco, com "constante repetição literal de trechos", segundo a pesquisa. "Por exemplo, o tópico 'Introdução', que relaciona doutrina a respeito de tópicos de direito penal, é idêntico nas PETs 10.057, 10.059, 10.060, 10.061, 10.062, 10.064, ou seja, em seis dos nove pedidos de arquivamento analisados. Ocupando cerca de 45 páginas, não trazem qualquer comentário específico sobre a suposta aplicabilidade destes conhecimentos gerais aos casos concretos", aponta o artigo.

Risco de impunidade

O estudo aponta que, com o arquivamento dos processos, há um risco de aumento da impunidade na prática de crimes que atentem contra a saúde pública. Ventura menciona o caso dos prefeitos de 19 municípios de Santa Catarina que baixaram decretos dispensando a vacinação contra covid-19 para matrícula e rematrícula na rede pública.

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Fica mais difícil para um ministro ou secretário de Saúde fazer recomendações ou adotar medidas. Por que se opor ativamente a essas medidas se elas não forem mais consideradas infração ou crime?
Deisy Ventura, professora da USP

A chegada de Paulo Gonet à PGR pode abrir mudar a situação. Uma das petições que mira Bolsonaro ainda tramita no STF, apesar de a Procuradoria já ter pedido o arquivamento. O caso investiga o ex-presidente por incitar o descumprimento de medidas sanitárias durante a pandemia de covid-19 e está agora sob relatoria do ministro Flávio Dino, recém-chegado ao STF. "Basta uma mudança de posição ou uma nova iniciativa", aponta Ventura. "Esses crimes ainda não prescreveram, mas um dia vão."

Aras diz que PGR fez 'grande esforço' contra covid

Após a publicação da reportagem, o ex-procurador-geral Augusto Aras enviou ao UOL uma nota em que afirma que a PGR e o Conselho Nacional do Ministério Público lideraram um "grande esforço nacional para combater a covid-19".

Segundo Aras, entre adotar uma "linha de atuação de confronto" ou outra de "busca de solução proposta pelos órgãos de saúde pública", o Ministério Público escolheu a segunda opção.

A linha tradicional do confronto e de imposição de condutas legais renderia manchetes e aqueceria ainda mais o cenário político, como muitos queriam. Mas não teria resultados práticos na luta contra o avanço da doença caracterizada à época por "incertezas empíricas"!
Augusto Aras, ex-procurador-geral da República

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De acordo com Aras, "diante da falta de legislação e da falta de respostas conclusivas da ciência durante a pandemia", o Ministério Público buscou "consenso" entre seus diversos segmentos para "padronizar" procedimentos legais.

O trabalho, de pouca visibilidade, mas de grande relevância, permitiu que gestores dos três níveis (municipal, estadual e federal) tivessem condições para buscar soluções e salvar vidas. Foi a atuação firme de procuradores e promotores na busca de consensos que permitiu compras de equipamentos, vacinas e a expansão das estruturas de atendimento em caráter emergencial e sem entraves burocráticos.
Augusto Aras, ex-procurador-geral da República

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