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Paraisópolis monitora 21 mil casas com presidentes de rua e médico próprio

Paraisópolis criou "presidentes de rua" para ajudar e alertar moradores - Divulgação
Paraisópolis criou 'presidentes de rua' para ajudar e alertar moradores Imagem: Divulgação

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

15/04/2020 13h22Atualizada em 15/04/2020 17h21

"A gente passa o dia inteiro na canela, moça", suspira a manicure Thainá dos Anjos, de 23 anos. Há mais ou menos trinta dias, a moradora de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, se tornou uma das 420 presidentes de rua da comunidade. O título, explica ela, traz a responsabilidade de monitorar e cuidar de, no mínimo, 50 casas na região —a iniciativa não tem nem um mês e foi criada por causa do novo coronavírus.

Segundo o líder comunitário Gilson Rodrigues, a ação começou a sair do papel em 19 de março. "A gente percebeu que o negócio seria grande e que as políticas públicas não chegariam às favelas. Então, decidimos criar a nossa própria". Gilson tem acesso aos cerca de 100 mil moradores de Paraisópolis e, quando os líderes comunitários decidiram que criariam um Estado dentro de um bairro, começaram a captar voluntários.

Hoje, 21 mil casas da comunidade são atendidas. Ainda assim, o número não chega ao total de moradias que ali existem. Por isso, são priorizadas as casas com famílias mais carentes. "À medida que novos voluntários se cadastrarem, mais abrangência terá o projeto", explica.

Todos os voluntários passaram por treinamento, que foi inicialmente presencial. Depois de o governo de São Paulo decretar quarentena, os voluntários começaram a ser treinados online.

Cada um dos presidentes de rua tem pelo menos quatro tarefas: conscientizar e monitorar o morador para que ele permaneça em casa; distribuir as doações que chegam e evitar que as entregas gerem aglomerações; chamar socorro, se necessário for, em casos de sintomas de covid-19 ou outras doenças; e, por fim, levar boas notícias e combater fake news.

O voluntário não ganha dinheiro. Contudo, a casa em que mora Thainá é uma entre as 50 de que cuida. Quando chegam cestas básicas e doações, são eles os primeiros a serem atendidos.

A associação da comunidade contratou, por meio de uma empresa privada, três ambulâncias: duas delas são básicas, e uma, UTI. Além das estruturas, Paraisópolis conta com dois médicos, três enfermeiros e dois socorristas —todos a postos para suprir a comunidade por 24h.

paraisópolis - Divulgação - Divulgação
Presidentes de rua, voluntários, durante treinamento presencial em Paraisópolis
Imagem: Divulgação

O custo da estrutura e dos profissionais, segundo Gilson, é de R$ 5.000 por dia. "Com o dinheiro que temos, conseguimos manter esse sistema funcionando apenas até o fim de abril. Por isso, criamos uma vaquinha para que consigamos arrecadar fundos e suprir o próximo mês.".

Na segunda-feira (13), Thainá precisou chamar a ambulância para moradores de uma das casas que auxilia.

Ela conta que o espaço, minúsculo, abrigava oito pessoas aglomeradas —dois idosos, três adultos e três crianças. Uma das idosas começou a apresentar os sintomas de coronavírus, assim como uma das mulheres que ali mora.

Duas escolas estaduais foram cedidas pela Secretaria de Educação, segundo Gilson, após pedido da associação. Os espaços abrigarão 500 leitos para moradores que tiverem o novo coronavírus —ou a suspeita. As duas mulheres da casa que Thainá visitou serão levadas para um desses lugares, que está "quase pronto".

As atribuições tomam quase 20 horas do dia de Thainá. "Teoricamente, somos responsáveis por 50 casas, mas na prática é muito mais que isso. À medida que andamos pelas ruas distribuindo cestas básicas e doações, somos procurados por outros muitos moradores, cheios de perguntas."

"Eles já param a gente na rua mesmo, e perguntam se vamos entregar algo, se temos álcool em gel para doar. A gente já entregou todo o álcool, não tem mais, mas é o que todo mundo pede. Estão desesperados."

Thainá  - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Thainá (à direita) e outras presidentes de rua distribuindo cestas, máscaras e álcool em gel para moradores
Imagem: Arquivo Pessoal

A moradora explica que a prioridade das doações que chegam é de famílias mais necessitadas.

"Muitas casas aqui não têm saneamento básico, nem tratamento de esgoto. São barracos mesmo, e a gente prioriza essas pessoas", diz a presidente.

Enquanto não está na rua, Thainá mapeia as casas que já receberam doações e quais ainda estão na fila. Ainda assim, conta, tem de lidar com a ira de muitas famílias que, preocupadas, não entendem a situação.

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Moradora de Paraisópolis recebe cestas básicas do presidente de rua
Imagem: Divulgação

"O que recebemos de doações não atende nem metade da população de Paraisópolis. Por isso, precisamos priorizar. Esses dias, minha mãe me mostrou que algumas pessoas estavam divulgando fake news a nosso respeito, bravos. Mas estamos fazendo o que podemos", afirma. "É muita pressão em cima da gente."

Thainá está em quatro grupos de WhatsApp com moradores. Deles, ela ouve, o tempo todo, pedidos, reclamações e apelos. Alguns, ao vivo, como é o caso de "uma senhorinha que, todos os dias, chora no portão de casa porque quer sair".

"A gente passa e ela grita, diz que não quer mais ficar presa. A gente tenta explicar a ela que é pela saúde, mas é difícil. Essas pessoas estão acostumadas a serem livres. Esse trabalho de conscientização também é nosso papel".

Às vezes, entre as grades dos portões, a moradora sente que as pessoas tentam conversar. Por causa da solidão, veem nos presidentes a única forma de contato. Thainá trabalhava como manicure. Agora, na nova função, se protege com máscaras, luvas e o pouco álcool em gel que sobra.

"Morro de medo de pegar essa doença porque minha mãe é idosa, eu moro com ela e com duas crianças. Só que nunca pensei em não assumir essa responsabilidade. Muitas pessoas não querem ser voluntárias, entendo, elas têm medo. A gente precisa se ajudar, então decidi me expor", diz Thainá.

Gilson Rodrigues, líder comunitário em Paraisópolis - Alexandre Battibugli/Divulgação - Alexandre Battibugli/Divulgação
Imagem: Alexandre Battibugli/Divulgação

Gilson conta que todo presidente tem um vice, que assume as cinco dezenas de casas caso o líder principal fique doente.

"Essa estrutura que criamos em Paraisópolis está sendo replicada, em algum nível, em 361 comunidades no Brasil. Além de todas as questões estruturais, temos, também, um programa chamado 'Adote uma diarista'. Tivemos 150 diaristas adotadas —elas passaram a receber R$ 300, além de um kit de higiene e uma cesta básica por mês durante três meses. Faltam, ainda 802 delas a serem adotadas".

"Outra iniciativa de Paraisópolis é o projeto 'Costura missões, Brasil'. É tipo um home office das costureiras —apoiamos essas profissionais para que vendam seus materiais, como panos de prato. Além disso, elas estão, de casa, fabricando máscaras. É uma parceria, também com uma empresa privada. Só aqui em Paraisópolis, as costureiras vão distribuir, gratuitamente, 50 mil máscaras", afirma.

Para ajudar com as doações a moradores, clique aqui. Se quiser contribuir com o projeto "Adote uma diarista", aqui.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A comunidade de Paraisópolis tem cerca de 100 mil habitantes, e não 43 mil, como informado na primeira versão do texto. A frase foi corrigida.