100 mil mortes: País celebra combate à covid com taxa que esconde realidade

A Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República) celebrou hoje, nas redes sociais, as ações do governo federal no combate à covid-19 com uma métrica criticada por especialistas por esconder a realidade por trás da doença e induzir a erro. A publicação, feita no dia em que o Brasil passou de 100 mil mortes e de 3 milhões de casos, segue o tom adotado pelo presidente Jair Bolsonado (sem partido) e seus principais aliados de ignorar o número de óbitos e focar no de pacientes recuperados.
No Twitter, a secretaria postou um vídeo com taxas sobre a pandemia e escreveu na legenda: "Todas as vidas importam: as que vão e as que ficam. Lamentamos as mortes por covid, assim como por outras doenças. Nossas orações e nossos esforços têm a força de um Governo que dá tudo para salvar vidas, com uma reação que serve de exemplo ao mundo todo. O Brasil vai em frente."
Entre os dados divulgados no vídeo estão "quase 3 milhões de recuperados" e "um dos menores índices de óbitos por milhão entre as grandes nações".
A questão, aqui, é a taxa de mortes por milhão, que tem sido usada por Bolsonaro há cinco meses para alegar que o Brasil estaria melhor nos rankings internacionais do que as taxas de infectados e mortos dão a entender.
O índice, dizem pesquisadores e epidemiologistas, é ineficaz para medir o momento da covid-19 e induz a entendimentos equivocados da epidemia
Além disso, é uma taxa usada para problemas crônicos, e não agudos, como uma epidemia que você espera mitigar — e também utilizada pelos países para se esquivar de críticas.
Entre os principais motivos apontados estão o fato de que nem toda a população tem a mesma exposição ao vírus, há países em momentos diferentes da epidemia, além da subnotificação e da brutal diferença de taxas que temos entre os estados.
Em entrevista ao UOL em junho, o professor do Instituto de Medicina Social do Departamento de Epidemiologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador do Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), Paulo Nadanovsky, explicou que o índice não ajuda a entender a pandemia:
"Só o fato de a população ser muito grande, e de grande parte não ter entrado em contato com o vírus, faz com que a propagação rápida fique escondida pelo tamanho da população. Isso atrapalha a gente a entender a velocidade dessa propagação", afirmou.
Segundo o mesmo raciocínio, o médico e doutorando na Universidade de Oxford, no Reino Unido, Ricardo Parolin Schnekenberg, assegurou ao UOL em junho que não se usa esse tipo de taxa para eventos considerados agudos e que não se pretende que se repitam anualmente.
"Se cai um avião com 210 pessoas ninguém diz que foi uma morte por milhão de habitantes. O que quero dizer é que se trata de uma doença que a gente concorda — como sociedade — que tem que ser suprimida, que não queremos que se torne crônica. Se não fosse o caso, até poderíamos acompanhar por esse índice. A mesma coisa vale para o ebola na África, que ninguém reporta dessa forma. Para eventos agudos, não utilizamos [o índice] porque nem todas as pessoas estão expostas àquele risco", exemplifica.
Com 46.305 novos casos nas últimas 24 horas, o Brasil chegou a 3.013.369 infectados pelo covid-19 desde o início da pandemia, informou o levantamento de consórcio de veículos do qual o UOL faz parte. Segundo o boletim mais recente, o país teve 841 óbitos confirmados desde ontem à noite. O total agora é de 100.543.
O país segue em segundo lugar no número de casos e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos nos dois quesitos, segundo dados da universidade norte-americana Johns Hopkins.
Até o momento, o chefe do Executivo não se manifestou sobre o tema, contentando-se em destacar o número de pacientes recuperados da doença. O silêncio ocorre em meio a uma tentativa do presidente de amenizar seu discurso e iniciar um novo ciclo de governo, ligado a realizações e agendas positivas. Em suas redes sociais, surgiu no final da noite para falar não da Saúde, mas do título conquistado pelo Palmeiras no campeonato paulista.
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