Jamil Chade

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Reportagem

Como Biden ajudou a evitar um golpe de Estado no Brasil

O fim da campanha presidencial de Joe Biden foi marcado, no domingo, por um anúncio que pegou até mesmo seus aliados mais próximos de surpresa. Num editorial, o New York Times destacou que o experiente político americano fez o que Donald Trump jamais faria: colocar os interesses da nação como prioridade, e não os seus.

Ele estava isolado. Politicamente e fisicamente, ao se recuperar da covid-19 em sua casa de praia, na costa de Delaware.

Analistas destacam que pesou para a decisão de Biden ser confrontado por números que mostravam que sua permanência poderia afetar as eleições não apenas para a presidência, mas também para as chances dos Democratas no Senado e Câmara de Deputados.

Trump teria a possibilidade de conseguir um controle total sobre o poder nos EUA.

É fato que o encerramento melancólico de sua candidatura transforma a corrida presidencial e certamente marcará sua carreira política de mais de 50 anos. Mas não se pode ignorar o papel de Biden na defesa do Estado de Direito e da democracia no Brasil.

Para diplomatas brasileiros, se Trump tivesse continuado no poder em um segundo mandato, a história do Brasil poderia ter sido outra.

A lógica da atuação de Biden não era apenas garantir a democracia num país sul-americano. O centro de sua preocupação era o eco que um golpe da extrema direita poderia ter em seu próprio país, principalmente depois das cenas da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

Recados de Biden ao governo Bolsonaro

Em julho de 2022, uma reunião entre os chefes da pasta de Defesa do Brasil e dos EUA sinalizou aos militares em Brasília que eles não teriam o respaldo de Washington sob o comando de Biden, caso optassem por uma aventura golpista.

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De um lado da mesa estavam Laura Jane Richardson, general quatro estrelas do Exército dos EUA e chefe do Comando Sul, e Lloyd Austin, secretário de Defesa norte-americano. De outro, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa do Brasil e ex-comandante do Exército brasileiro.

Fontes que estiveram naquela sala relembram como o tom usado pelos representantes de Biden foi claro: as instituições democráticas brasileiras eram sólidas. Ou seja, não haveria qualquer tipo de apoio a uma ofensiva por parte dos militares brasileiros em relação ao questionamento contra a democracia no país.

O recado foi entendido por todos que estavam naquele local. Dias antes, o então presidente Jair Bolsonaro havia usado um encontro com embaixadores estrangeiros em Brasília para atacar as urnas eletrônicas e questionar o processo eleitoral no Brasil.

Naquele momento, o governo recebia uma série de visitas do mais alto escalão do governo americano, incluindo o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA) e a cúpula da Segurança Nacional.

Mais de um ano após os atos de 8 de janeiro, diplomatas admitem que a pressão discreta por parte de Biden ajudou a mandar um recado aos militares brasileiros de que um processo golpista não encontraria respaldo pelo mundo. Pesou ainda uma carta de senadores americanos pedindo que o presidente americano suspendesse qualquer acordo militar com o Brasil, caso uma ruptura institucional ocorresse.

O recado era simples: um golpe poderia até ocorrer. Mas o dia seguinte do novo regime traria custos elevados para aqueles no poder. Sem o apoio de membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), restariam ao eventual novo governo golpista alianças com párias internacionais e regimes isolados dispostos a usar o Brasil para fortalecer posições contra os EUA.

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Articulação partiu do Brasil

Ao contrário do que justificou a ala bolsonarista, não houve ingerência americana. O que ocorreu foi a recusa e o sinal de que os EUA não embarcariam num apoio a um grupo que optasse por uma ruptura do Estado de Direito. Se a ação americana ajudou a dar resultados, a iniciativa não ocorreu por acaso e nem se limitou aos EUA. Desde 2021, forças políticas brasileiras, ministros do STF, grupos de ativistas, embaixadores e entidades de direitos humanos começaram a identificar que o cenário de um eventual golpe poderia ocorrer no Brasil, repetindo a invasão do Capitólio nos EUA ou criando dificuldades e instabilidade para o novo governo.

A ofensiva brasileira tinha como objetivo criar uma situação na qual o custo de um golpe fosse insuportável aos seus apoiadores, desde militares aos operadores do sistema financeiro. Para isso, precisavam que o mundo impusesse esse custo.

Em sigilo, conversas começaram a ser realizadas para alertar países de que era necessário uma reação para ajudar a blindar a democracia brasileira. A estratégia contou com vários atores, de diversos Poderes.

Um deles foi o uso deliberado do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e uma ofensiva para convencer embaixadas estrangeiras em Brasília de que as urnas eram confiáveis e que o sistema era sólido.

Ainda em 2022, uma visita organizada pelo Judiciário aos delegados de vários países causou uma profunda irritação em Bolsonaro, já que desmentia a própria narrativa do presidente.

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A conscientização dos ministros das cortes supremas no Brasil havia começado, de fato, muito antes. Dias Toffoli teve um encontro que deixaria claro o fato de que a comunidade internacional entendia que, depois do Capitólio, o país era a "bola da vez".

Em Washington e em capitais europeias, grupos de ativistas brasileiros foram recebidos por governos, deputados e autoridades, justamente para tratar da ameaça que a eleição no final daquele ano representava.

Embaixadores aposentados e dissidências dentro do Itamaraty também agiram para fazer soar o alerta em diversas capitais pelo mundo. "O recado era de que existia uma chance real de que o governo Bolsonaro repetiria o comportamento de Trump e não aceitaria o resultado da eleição", relembra um embaixador brasileiro, na condição de anonimato. O ex-presidente sempre negou qualquer participação em uma tentativa de golpe de Estado.

Nos EUA, o embaixador Thomas Shannon também foi um importante interlocutor entre o gabinete de Joe Biden e aqueles que alertaram para o risco de um golpe.

Bolsonaro tentaria revidar, organizando uma reunião com embaixadores estrangeiros para criticar o sistema eleitoral nacional. Com várias das delegações já alertadas, o encontro foi um fracasso e, meses depois, gerou a inelegibilidade do ex-presidente.

Biden condenou publicamente os ataques de 8 de janeiro

Do lado americano, assim como europeu, os gestos indicaram que o processo eleitoral brasileiro não seria apenas mais um no mundo.

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Durante a apuração, no segundo turno de 2022, embaixadas estrangeiras enviaram mensagens de apoio ao processo eleitoral e de confiança em relação às urnas. Imediatamente após o anúncio dos resultados, governos se apressaram em felicitar Lula. Ali, o que estava em jogo não era o candidato do PT. Mas a capacidade de que, nas urnas, a extrema-direita fosse derrotada.

O segundo teste seria a posse de Lula. Uma vez mais, governos de todo o mundo enviaram seus representantes para Brasília. Não se tratava de uma chancela ao presidente Lula. Mas uma demonstração de força contra a extrema-direita e uma tentativa de blindar qualquer tipo de ação.

O resultado foi uma posse com mais de 70 delegações estrangeiras, um recorde.

O maior teste, porém, fica no dia 8 de janeiro de 2023, com as cenas que rapidamente ganharam o mundo acendendo um alerta internacional em relação à extrema direita e a necessidade de vigilância permanente. Líderes se apressaram para deslegitimar um golpe no Brasil, enquanto membros do governo passaram a ser alvos de telefones e demonstrações de apoio.

Numa manobra coordenada, EUA, Europa e América Latina blindaram Lula e a democracia brasileira, insistindo que não haveria qualquer chancela a uma ameaça de ruptura. A necessidade de uma reação ficou ainda mais clara quando, nos serviços de inteligência, foi identificada a "comemoração" que ocorria nos principais canais da extrema direita no mundo. Não faltaram comentários de Steve Bannon, articulador americano, e de outros nomes.

Os EUA, país que viveu cenas similares em 2021, também se manifestaram em apoio ao Brasil, imediatamente.

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O presidente Joe Biden chamou os ataques de "ultrajantes". "Condenamos os ataques contra a presidência, Congresso e Corte Suprema do Brasil hoje", afirmou Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano. "Usar violência contra instituições democráticas é sempre inaceitável", disse. "Nos aliamos ao presidente Lula para pedir um fim imediato a essas ações", declarou. Assessores de Biden afirmaram que a democracia no Brasil era "inabalável".

Bernie Sanders, senador americano, destacou que foram atos como o de 8 de janeiro que levaram o Congresso americano a aprovar uma resolução na qual os EUA teriam de suspender qualquer cooperação com o Brasil caso um golpe ocorresse. "Estamos ao lado do governo democraticamente eleito e condenamos a violência autoritária", disse.

"A violência não tem lugar nenhum numa democracia. Condenamos fortemente os ataques às instituições dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em Brasília, que é um ataque também à democracia. Não existe justificativa para esses atos", escreveu a embaixada americana em Brasília.

"Invasões por indivíduos que não aceitam um resultado eleitoral violam a democracia de um país. Exortamos o fim imediato desses ataques", afirmaram as representações americanas no Brasil.

Jamie Raskin, deputado que investiga os atos de 6 de janeiro de 2021 contra o Capitólio, afirmou que "as democracias do mundo precisam agir rapidamente para deixar claro que não haverá apoio" aos criminosos de direita.

Chamando os golpistas de "fascistas", ele destacou que os criminosos repetiram a receita de Donald Trump e que precisariam terminar na "prisão".

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Nada disso, porém, teria sido a reação de Biden não estivesse no poder.

Palácio do Planalto teme fortalecimento de bolsonaristas com eventual vitória de Trump

Agora, uma eventual vitória de Trump também é vista como uma potencial alavanca para as teses que bolsonaristas têm promovido no exterior, de que o Brasil vive uma suposta "ditadura", que não há liberdade de expressão e que existe uma perseguição à oposição liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Seus apoiadores e principais articuladores nos EUA já iniciaram a preparação de uma campanha para difundir a ideia no meio político americano e na opinião pública de que existiria uma ameaça à democracia no Brasil e que, portanto, o novo governo americano teria de agir para colocar sanções ou algum tipo de medida contra o país.

Se a narrativa falsa não prosperou durante o governo de Joe Biden, a expectativa é de que tudo isso pode mudar radicalmente se Trump vencer a eleição e eventualmente escolher abrir uma frente de tensão com Lula.

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Nesse caso, não apenas o governo brasileiro indica que não poderá simplesmente ficar em silêncio, mas também terá de agir para conter a desinformação que pode circular sobre a realidade política do país.

O enredo já está desenhado. Com o apoio das redes de Elon Musk, políticos e blogueiros bolsonaristas se apresentam como supostos perseguidos, usam figuras como a de Filipe Martins como exemplo de supostas prisões arbitrárias, transformam o debate num tema de direitos humanos e emplacam a ideia de que o Brasil supostamente deixou de ser uma democracia.

Trump, do outro lado, chancelaria a narrativa.

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