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País já aplicou 63% de doses que tem; problema principal é falta de vacina

Vacinação de indígenas da aldeia Umuriaçu, próximo a Tabatinga, no Amazonas - 4.fev.2021 - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Vacinação de indígenas da aldeia Umuriaçu, próximo a Tabatinga, no Amazonas Imagem: 4.fev.2021 - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nathan Lopes

Do UOL, em São Paulo

01/04/2021 04h00

Resumo da notícia

  • Ministros do governo Bolsonaro têm feito relação entre doses distribuídas e aplicadas
  • Ter 63% doses aplicadas reflete problema com quantidade ofertada, dizem especialistas
  • Além disso, levar vacinas para algumas regiões demora dias

Cerca de seis em cada dez doses de vacinas contra a covid-19 distribuídas pelo Ministério da Saúde já foram aplicadas, de acordo com levantamento do UOL com base em informações da própria pasta e dos estados.

O dado tem sido utilizado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para criticar estados e municípios a respeito da velocidade da vacinação. A tese já foi apresentada por ministros, como Damares Alves, dos Direitos Humanos, e Fábio Faria, das Comunicações. Ontem, foi a vez do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) tocar no assunto. Na verdade, o dado mostra um problema causado pelo próprio governo federal: a falta de doses. Até ontem, o Brasil tinha vacinado 17,6 milhões de pessoas, o que equivale a 8,32% da população nacional.

A comparação entre as doses distribuídas e as efetivamente aplicadas é criticada por especialistas e gestores da área da saúde porque desconsidera fatores como:

  • logística: a dose liberada para distribuição não é aplicada no dia seguinte, já que há um caminho para chegar ao posto de vacinação --o que não é tão simples em algumas regiões do país;
  • cadastro: algumas localidades têm enfrentado dificuldades técnicas para incluir no sistema os dados sobre as doses aplicadas, além do fato de a vacina contra a covid-19 demandar um registro nominal, o que também contribui para atrasar o processo;
  • distribuição: doses são entregues em quantidades pequenas e irregulares.

As especialistas ressaltam que o Brasil tem tradição em aplicação rápida e em massa, e que o debate sobre aplicação das doses distribuídas mascara o problema principal, que é a falta de doses, responsabilidade do governo federal —que, constantemente, não tem cumprido o cronograma de entregas.

"Parece que demora muito, mas, na verdade, não demora", diz Mayra Moura, diretora da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), ao explicar que, até chegar no braço do brasileiro, a dose passa por estruturas dos governos federal, estaduais e municipais.

Em campanhas como a da gripe —na qual se baseia o programa de imunização contra a covid-19—, a aplicação transcorre da mesma forma, mas a relação entre distribuir e aplicar não é destacada porque não há problema com o quantitativo de doses.

Tempo para chegar ao braço

Após receber as doses, os estados geralmente levam entre 24 a 48 horas para entregar os imunizantes a suas cidades. Para chegar ao braço dos brasileiros, é possível que ainda leve mais algum tempo, já que o cidadão não precisa ir ao posto de vacinação exatamente no dia seguinte à chegada do imunizante ao posto de saúde.

"A nossa logística tem que prever, pelo menos —entre chegar a vacina e estar na ponta—, de cinco a sete dias", diz Regiane de Paula, coordenadora do programa de imunização do Estado de São Paulo, que já planejava a imunização contra a covid-19 no estado desde agosto do ano passado.

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A partir da disponibilização pelo Ministério da Saúde, dose passa para uma cadeia logística envolvendo estados e municípios para chegar à sala de aplicação
Imagem: 18.jan.2021 - Marcelo Justo/UOL

Logística difícil

Até o dia 31 de março, das cerca de 35 milhões de doses enviadas aos estados, 31,6 milhões já haviam sido repassadas aos municípios, de acordo com dados do ministério. Das 27 unidades da federação, 14 estão abaixo da média nacional, de 63%.

Duas delas são estados em que a logística é difícil, como Roraima e Amazonas, em que, para que as doses cheguem a algumas localidades, é preciso usar praticamente todas as modalidades de transporte, de aéreo a fluvial.

"E o custo é altíssimo para o volume de doses que está chegando", diz Ângela Carepa, do departamento de Vigilância Epidemiológica do Amazonas, lembrado das populações ribeirinhas e de quem vive em embarcações. "Fora os que moram no meio da selva, que só dá para chegar de helicóptero."

Além de enfrentar o problema de logística, notificar a aplicação também é um fator que não contribui para acelerar a contabilização, como acontece no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, que fica em uma área de difícil acesso e comunicação em Roraima.

"Eles recebem, aplicam as doses, mas levam um tempo muito maior para inserir isso no sistema", diz a farmacêutica Valdirene Oliveira, coordenadora-geral de Vigilância em Saúde do estado.

O DSEI Yanomami, por exemplo, recebeu 15.396 doses, mas constam 2.601 cadastradas como aplicadas, de acordo com dados de terça (30).

"Eles estão aplicando as doses, mas elas não estão aparecendo", diz Oliveira, que, por um relatório do DSEI, tem o controle de que 7.000 já foram aplicadas.

"É um sistema pesado, nós temos problemas de internet. Dificulta mais ainda", diz Carepa, em referência ao SI-PNI (Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunização).

Nova notificação

Outra razão que gera demora para a notificação é uma nova forma de fazer o cadastro da informação sobre a dose aplicada. Para o imunizante contra a covid-19, o sistema pede dados da pessoa e da vacina utilizada.

Em campanhas tradicionais, como a da gripe, a notificação é sobre a dose, sem referência à pessoa imunizada. "Antes, você lançava por quantidade [de doses]. Agora, você lança no sistema por nome", diz Moura.

"É a primeira vacinação que exige um cadastro nominal", diz Magda Almeida, secretária-executiva de Vigilância e Regulação do Ceará. Ela lembra que, em alguns momentos, até a capital Fortaleza não conseguiu incluir dados no SI-PNI, "que é instável, que cai".

Por isso, em paralelo, o Ceará mantém uma contabilização mais simples até conseguir incluir o dado no sistema. "A gente aplica até anotando em folha de papel. Para dar agilidade, dar mais transparência. Aí, diminui esse delay [demora]", diz Almeida.

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Sobrecarga pode ter peso em demora para incluir doses aplicadas no sistema de contabilização
Imagem: Facebook/Reprodução/Prefeitura de Nova Granada

Com um registro mais detalhado, algumas cidades optam por fazer um "pacote" de notificações. "Às vezes, os municípios não fazem na mesma hora, no mesmo dia. Alguns reúnem [os dados de doses aplicadas] para fazer em um outro momento, deixam para jogar no sistema em fim de semana", diz Janaína Fonseca Almeida, diretora de Vigilância de Agravos Transmissíveis de Minas Gerais.

Ela ainda avalia que o problema pode estar atrelado à sobrecarga e a falta de profissionais para a tarefa. "[Os municípios] sempre registram menos do que aplicam. E isso é clássico em todas as campanhas. Campanha da influenza é a mesma coisa."

Sobre a aplicação das doses distribuídas, o UOL recebeu respostas das secretarias de saúde de 17 estados. Em comum, eles reforçam que a responsabilidade para a aplicação das doses é dos municípios, cabendo aos governos estaduais a distribuição e acompanhar o andamento da vacinação.

O Maranhão, por exemplo, diz que tem reforçado para as prefeituras "a orientação para envio dos dados atualizados diariamente e para a celeridade da aplicação das doses".

País precisa de mais doses

Os estados que responderam ao questionamento do UOL disseram que, após a nova determinação do Ministério da Saúde, deixaram de fazer a reserva para a segunda dose da CoronaVac.

"Na prática, isso significa que o Ministério da Saúde tem a obrigação de garantir a segunda dose em tempo hábil", diz, em nota, a secretaria de Saúde da Bahia. "A gente precisa acreditar que o abastecimento não vai sofrer prejuízo", diz Oliveira, de Roraima.

Algumas doses da CoronaVac, distribuídas antes da nova determinação, estão guardadas para completar o esquema vacinal do imunizante nos próximos dias. "5,2 milhões é a reserva para a segunda dose, que tem que estar lá porque o tempo é curto", disse o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), líder do Fórum dos Governadores, em reação à crítica de Lira. "O problema mesmo é a falta de vacina."

Por trás da discussão sobre a aplicação das doses distribuídas aparece o ponto que deveria ter mais destaque, na visão de Moura, da SBIm. "O que a gente tem que ficar preocupado é em distribuir mais doses. Tendo mais doses distribuídas, vamos ter mais gente vacinada. E essas outras questões vão sendo resolvidas automaticamente."

Paula concorda. "O problema não está no delay da aplicação porque a vacina chegou para o município. O quantitativo de vacina que chegou é que é o meu problema", diz. "A angústia é de todos: precisamos de mais vacinas."