O Brasil vai enviar tropas para outra missão de paz após deixar o Haiti?
A missão de paz da ONU no Haiti pode ser encerrada em 2017. Com essa perspectiva em vista, integrantes do governo brasileiro cogitam a possibilidade de enviar tropas terrestres para outra operação de paz das Nações Unidas - possivelmente no Líbano ou na África.
Mas ainda não está claro quando isso acontecerá ou mesmo se ocorrerá - em um cenário de crise econômica e tentativa de implementação de uma política de austeridade no Brasil. A ONU anunciou nesta semana que a missão no Haiti vai se estender até abril de 2017 e as autoridades do país divulgaram nesta sexta-feira um novo calendário eleitoral devido aos estragos causados pelo furacão Matthew.
Se avançar, a ideia também deve encontrar resistência de movimentos sociais e partidos políticos de esquerda - que argumentam que as missões de paz seriam destinadas a defender interesses de potências estrangeiras e empresas.
Membros de alto escalão das Forças Armadas e do Ministério da Defesa trabalham com a ideia de fazer parte de alguma missão da ONU no oeste da África - possivelmente no Mali.
Já diplomatas do Ministério das Relações Exteriores entendem que a participação em outra missão só deve ocorrer se houver uma "justificativa grande" para o envolvimento brasileiro. Se uma das missões atuais da ONU tiver que ser escolhida, eles são mais favoráveis à Unifil, no Líbano - país com o qual o Brasil tem laços mais fortes e onde já comanda a Força Tarefa Naval da ONU e tem uma embaixada.
A pasta também defende que a operação tenha a característica de "manutenção" da paz - em contrapartida das missões mais robustas de "imposição" da paz - para estar de acordo com a tradição e a lei brasileira.
Entre 1947 e 2015, o Brasil enviou mais de 48 mil militares para 47 missões da ONU, segundo levantamento da pesquisadora Eduarda Hamann, do Instituto Igarapé. Os maiores contingentes de tropas foram enviados para o Haiti, países de língua portuguesa, como Angola e Timor Leste, e para o Líbano.
Hoje, o Brasil tem cerca de 1,3 mil militares engajados em missões da ONU. A maioria deles está no Haiti (cerca de 850).
Haiti
Membros do governo e analistas concordam que, por motivos econômicos, o Brasil só seria capaz de se engajar em uma nova missão de paz depois que as Nações Unidas encerrarem a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti).
O Conselho de Segurança da ONU determinou que o mandato da missão no Haiti seja estendido até abril de 2017.
A esperança é que até lá seja possível realizar eleições democráticas e empossar um novo presidente.
Porém, isso não significa que o mandato não possa voltar a ser estendido. Isso já ocorreu várias vezes.
O último plano da ONU era tirar seus capacetes azuis do país em outubro de 2016. Mas o ciclo eleitoral previsto para ser concluído no início do ano foi cancelado devido a denúncias de fraude e ondas de violência. Desde então o país tem um governo provisório.
Para agravar a situação, o furacão Matthew provocou nova catástrofe humanitária dias antes do final do mandato da Minustah e provocou novo adiamento da votação. O primeiro turno das eleições que deveria ter ocorrido no dia 9 de outubro foi adiado para 20 de novembro.
Há muitas justificativas para ficar mas, por outro lado, a missão vive o que os analistas chamam de uma situação de "fadiga". Muitos países doadores de recursos e tropas entendem que a situação de segurança já está controlada e estão pouco satisfeitos com as sucessivas crises políticas e institucionais do Haiti.
Por causa disso, surgiram rumores não confirmados nos meios militares e diplomáticos de que a missão militar seria encerrada em 2017 mesmo que o atual ciclo eleitoral não seja completado. A Minustah poderia ser substituída então por uma missão política.
África ou Oriente Médio?
Um integrante da cúpula do Ministério da Defesa afirmou à BBC Brasil que a pasta tem grande interesse em participar de uma missão de paz no oeste da África após a retirada do Haiti.
Essa área do planeta é considerada de interesse estratégico do Brasil, de acordo com a Política Nacional de Defesa.
Essa intenção é reforçada pelo fato do Brasil ser um dos alvos de um esforço diplomático crescente da França para angariar apoio e tropas para missões de paz em suas ex-colônias no continente africano.
Fontes dos meios diplomáticos e militar, que pediram para não serem identificadas, afirmam que haveria um interesse específico dos militares brasileiros pela Minusma, a missão de paz da ONU no Mali.
Essa missão envolve proteger a população realizar eleições em um país que luta para reestabelecer sua integridade territorial após a expansão de grupos extremistas islâmicos - como a Ansar Dine e a al-Qaeda do Maghreb Islâmico.
Diplomatas do Itamaraty consideram a missão de "altíssimo risco" e dizem que ela não se encaixa exatamente na política brasileira de se envolver apenas em missões de manutenção de paz.
Após lembrar das dificuldades para reunir verbas para uma nova missão, os diplomatas dizerem que mandar tropas terrestres para a Unifil, no Líbano, seria um projeto mais viável.
Isso porque o Brasil tem mais laços culturais com o Líbano devido ao grande número de imigrantes daquele país que se estabeleceu no Brasil.
Além disso, desde 2011 o país comanda a Força-Tarefa Naval - uma esquadra de navios da ONU que tenta impedir o contrabando de armas por mar para o Líbano. Uma dessas embarcações é brasileira e abriga uma tripulação de cerca de 250 militares.
Desde então já se cogitava o envio de tropas terrestres para participar de outros setores da Unifil.
Moeda de troca
Mas por que o Brasil iria querer enviar unidades militares para outra missão de paz?
"Participar de missões de paz é uma moeda de troca na política externa do Brasil", disse o pesquisador Hector Saint-Pierre, da Unesp.
"Isso facilita a vida do Itamaraty. É a moeda que o diplomata usa numa negociação para que o Brasil participe do cenário internacional".
Outros benefícios são treinar tropas nacionais em situação real de conflito e prestar solidariedade a uma nação menos favorecida, de acordo com o pesquisador.
Ele afirmou que o Brasil tem se destacado nessa área. A Minustah é considerada pela ONU uma missão de sucesso, a Força-Tarefa Naval do Líbano é a primeira do gênero e um general brasileiro - Carlos Alberto do Santos Cruz - comandou na República Democrática do Congo (2013-2015) a primeira missão de caráter declaradamente ofensivo de capacetes azuis da ONU.
Segundo Hamann, do Instituto Igarapé, o Brasil sempre participou das missões de paz da ONU e intensificou sua atuação nos últimos 25 anos. Essa atuação ajuda a fortalecer o sistema multilateral da ONU - em contrapartida à atuação unilateral de potências mundiais no cenário internacional.
"Nós alcançamos um papel elevado. (Não participar de mais missões) poderia afetar a reputação brasileira. Afetaria nosso soft power".
Oposição
Já Zé Maria de Almeida, presidente do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) diz que a participação em missões de paz do formato atual é equivocada.
"Estamos sendo subservientes em relação às potências mundiais. Os Estados Unidos não tinham condições políticas para enviar tropas (para o Haiti) e nós ficamos com a tarefa inglória. Estamos fazendo segurança para empresas americanas", disse.
O PSTU e um grupo de movimentos sociais foram algumas das primeiras entidades a se opor à participação brasileira no Haiti.
"Temos obrigação moral e política de ajudar o povo haitiano, mas deveríamos colocar os recursos das tropas para construir hospitais e casas no Haiti."
Ele afirmou que haverá campanha contra eventuais novas missões de paz.
Modelo de missão
A visão do PSTU não é a adotada pela maioria dos analistas. Mas, mesmo os defensores das missões de paz dizem que o modelo de operações adotado pela ONU poderia sofrer mudanças.
A principal crítica é que, em teoria, as missões são multidimensionais e abrangem aspectos necessários ao desenvolvimento do país auxiliado - como a reestruturação do Judiciário, da segurança, do saneamento, etc.
Mas na prática nem todas as missões seriam flexíveis o bastante para atingir a complexidade que deu origem ao conflito, segundo Saint-Pierre.
Barreiras
Além da oposição de setores da sociedade há outros fatores que poderiam dificultar uma nova missão.
A ONU reembolsa os países pela participação de tropas em suas operações (em média, US$ 1,3 mil por mês por combatente). Países como o Uruguai usam esse reembolso como uma fonte de renda para manter suas próprias forças armadas.
Mas segundo um levantamento de Hamann, do Instituto Igarapé, o reembolso corresponde a 40% do dinheiro investido pelo Brasil. Segundo ela, o país investe muito na fase de preparação do militar, que não é remunerada pela ONU.
Outro fator é que o Brasil está atrasado com os pagamentos regulares para a manutenção da ONU. Isso pode influenciar ao negociar um papel mais importante na organização.
Há ainda a crise econômica e a tentativa de contenção de recursos que incluir até o fechamento de embaixadas brasileiras.
Mas se o projeto avançar, quem "venceria" o debate sobre o país escolhido?
Os especialistas ouvidos pela BBC Brasil não têm uma resposta, mas dizem que o Ministério da Defesa deve pressionar muito por uma missão na África.
Mas, segundo Hamann, o histórico de participação do Brasil em missões indica que o Itamaraty tradicionalmente tem um peso muito grande no processo decisório.
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