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'Colhíamos grama para minha mãe fritar com gordura', diz sobrevivente do Holocausto radicado no Brasil

Luis Barrucho

Da BBC Brasil em Londres

27/01/2018 13h30

O romeno Joshua Strul tinha oito anos quando sua infância foi abreviada.

Em outubro de 1941, tropas aliadas aos nazistas chegaram à cidade de Moinesti, na Romênia, onde ele, seus pais e seis irmãos --todos judeus-- viviam.

Em poucas horas, a família foi despojada de todos os seus bens.

"Até então, tinha uma infância feliz e tranquila. Estudávamos, íamos à sinagoga e brincávamos como todas as crianças. O convívio com os católicos era pacífico", recorda ele, atualmente com 85 anos, em entrevista por telefone à BBC Brasil.

"Mas o nazismo ganhava força na Europa e, quando as tropas chegaram à cidade, não tardou para perdemos tudo", acrescenta.

Radicado em São Paulo desde a década de 1950, Strul é sobrevivente do Holocausto, como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como homossexuais, ciganos, Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a 2ª Guerra Mundial, a partir de um programa de extermínio sistemático patrocinado pelo partido nazista.

Foi o maior genocídio do século 20 - uma ferida aberta que o tempo ainda não curou. Isso talvez explique a riqueza de detalhes com que Strul ainda relata sua experiência, pontuada por um sotaque ainda carregado, apesar da idade avançada.

"Meu pai tinha uma loja de cereais. Perdemos tudo. Nos tiraram o comércio e a nossa casa. Minha família, assim como todos os judeus da cidade, foi levada a uma cidade próxima, Bacau, onde nos confinaram em um gueto", diz.

Fome

Ali todos os judeus viviam em barracas de madeira - cobertas com folhas de zinco. Privados de sua liberdade, eram obrigados a ostentar uma estrela amarela nas roupas como identificação.

"No verão, era insuportavelmente quente. No inverno, um frio glacial", conta.

A fome também era uma constante.

"A migalha de pão significava a vida ou a morte. Colhíamos grama para minha mãe fritar com gordura de ganso. Foi assim que sobrevivemos", diz.

"Meu irmão caçula, no entanto, não conseguiu enfrentar as condições adversas e morreu aos dois anos."

'Providência divina'

Por uma "providência divina", como recorda Strul, a família não foi deportada para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, um dos principais locais de extermínio de judeus durante a guerra.

Em 1944, a Romênia foi libertada por tropas soviéticas, mas o pesadelo ainda não tinha terminado.

"Voltamos à nossa cidade-natal e nossa casa estava completamente depenada. Tudo nos foi roubado", lamenta.

Com muito esforço, a família reconstruiu pouco a pouco a vida que tinha antes da guerra.

Mas em 1947 os comunistas chegaram ao poder na Romênia. Propriedades particulares foram nacionalizadas e, de patrão, o pai de Strul se tornou empregado.

"Quando tentávamos recomeçar do zero, mais uma vez nos tiraram tudo."

Em 1950, a família decidiu fazer as malas para um Estado recém-fundado, Israel, já que um dos irmãos de Strul havia emigrado para o país quatro anos antes e lutado na guerra de independência.

Mudança para o Brasil

Mas o futuro parecia mais promissor fora do Oriente Médio.

Por meio de um conhecido da família, que já havia se estabelecido no Brasil, os Strul embarcaram em um navio rumo a uma terra então totalmente desconhecida.

"Foi uma viagem longa, na 3ª classe do navio, porque a 4ª não existia", brinca Strul. "Chegamos com uma mão na frente e outras atrás, não falávamos a língua e conhecíamos muito poucas pessoas."

O recomeço foi difícil. Sem educação formal, Strul começou a trabalhar como ambulante, vendendo roupas porta em porta.

Anos depois, já estabelecido, abriu sua loja de móveis na Zona Norte de São Paulo, de onde tirou o sustento para criar seus quatro filhos ("todos com formação acadêmica", destaca). Strul também tem dez netos.

Hoje aposentado, vive com a esposa Manuela, de 74 anos (o casal se conheceu em um baile de Carnaval no Rio de Janeiro em 1969), vai à sinagoga pela manhã e dedica-se a manter viva a lembrança do Holocausto por meio de palestras em escolas e eventos.

"Quero muito agradecer ao povo brasileiro por nos ter acolhido. Devo tudo a esse país. Amo este lugar."

Strul também diz ter tentado, por diversas maneiras, reaver a propriedade da família na Romênia, ainda sem sucesso.

"Há 20 anos, tento receber uma indenização, mas não consigo. Tenho até hoje a escritura da minha casa, mas minha casa continua confiscada".

Memória

Todos os anos, no dia 27 de janeiro, a comunidade judaica celebra o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

A data marca a libertação do maior campo de extermínio nazista, Auschwitz-Birkenau, por tropas soviéticas. No local, estima-se que mais de 1 milhão de pessoas, a maioria judeus, foram mortas.

No Brasil, a data será lembrada em evento promovido pela Confederação Israelita do Brasil (Conib), pela Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) e pela Congregação Israelita Paulista (CIP), no domingo, 28 de janeiro, na Sinagoga Etz Chaim em São Paulo.

No hall, acontecerá a exposição " Além do Dever - Diplomatas reconhecidos como Justos entre as Nações", produzida pelo Yad Vashem (Museu do Holocausto de Israel).

O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto é celebrado desde 2005, após uma resolução da ONU.