Topo

O que são e como agem as milícias acusadas de matar Marielle Franco

Márcia Foletto/Agência O Globo
Imagem: Márcia Foletto/Agência O Globo

Rafael Barifouse

Da BBC News Brasil, em São Paulo

15/12/2018 06h57

Grupos paramilitares se expandiram e se sofisticaram nos últimos anos, com uma variedade de negócios ilegais para financiar suas atividades e hoje podem ser um problema de segurança pública mais grave do que o tráfico de drogas, dizem especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

As milícias que atuam no Rio de Janeiro voltaram às manchetes nesta semana com desdobramentos de investigações ligadas à morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, executados a tiros na região central da capital fluminense há nove meses.

O general Richard Nunes, secretário de Segurança Pública do Estado, disse ao jornal "O Estado de S. Paulo" que Marielle teria sido morta a mando de milicianos. O motivo seria a crença de que a vereadora poderia interferir em interesses relacionados à grilagem de terras na zona oeste do Rio, principal área de atuação desses grupos paramilitares na cidade.

Na quinta-feira (12), foram cumpridos mandados de prisão, busca e intimações nas cidades de Nova Iguaçu, Angra dos Reis e Petrópolis, no Rio de Janeiro, e Juiz de Fora, em Minas Gerais.

Os mandados foram emitidos em inquéritos que correm em paralelo à investigação sobre a morte de Marielle e Anderson e teriam como alvos suspeitos de envolvimento com o crime.

Também foi feita uma operação de busca e apreensão na casa e no gabinete do vereador Marcello Siciliano (PHS). O político estaria envolvido junto com um miliciano no assassinato de Marielle, segundo depoimentos prestados à polícia. Siciliano nega qualquer participação no crime.

A Polícia Civil ainda apura um suposto plano para executar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Segundo uma denúncia anônima, um policial militar e comerciantes ligados a milicianos teriam a intenção de matá-lo.

Freixo é o autor do relatório da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigou a atuação das milícias, em 2008, e que culminou no indiciamento de 226 pessoas por ligações com estes grupos, entre elas vereadores e deputados estaduais.

Até hoje esta CPI foi a maior investigação já feita sobre a atuação de milícias.

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, as milícias representam hoje uma ameaça maior do que o tráfico de drogas no Rio de Janeiro.

O que são as milícias

Milícias são grupos armados irregulares formados muitas vezes por integrantes e ex-integrantes de forças de segurança do Estado, como policiais, bombeiros e agentes penitenciários.

Os milicianos assumem por meio da força armada o controle territorial de áreas ou mesmo bairros inteiros e coagem moradores e comerciantes, segundo definições traçadas pelos pesquisadores Ignácio Cano e Thais Duarte no estudo "No Sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)", publicado em 2012.

Estes criminosos se apresentam como uma solução para o problema do tráfico de drogas, seja para impedir sua entrada em um determinado bairro, por exemplo, ou como uma forma de expulsar os traficantes dali.

"Estes grupos podem ter 20, 30 ou até 40 membros. São pessoas que, de alguma forma, têm acesso privilegiado a armas e bons contatos na polícia, o que lhes confere proteção. Eles ocupam uma área sob a justificativa de que proporcionarão a segurança que o Estado não é capaz de fornecer, deixam um grupo armado no local e partem para outras áreas para invadi-las", diz Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

As milícias têm como objetivo principal o lucro, obtido a princípio pela cobrança da proteção oferecida nestes locais.

"Eles chegam dizendo que trarão a paz, mas isso tem um preço, que é a taxa de segurança imposta a moradores e comerciantes. Quem se opõe, é morto. Depois, as milícias percebem que podem criar um negócio mais amplo e ampliam o portfólio de suas atividades", explica o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, professor da UFFRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

O pesquisador diz que atualmente as milícias estão envolvidas na oferta de uma variedade de serviços, como venda de água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas ilegalmente.

Esta última atividade estaria ligada ao crime contra Marielle e Anderson, de acordo com a polícia, porque a vereadora estaria apoiando um grupo que lutava contra o plano da prefeitura para a comunidade de Rio das Pedras, na zona oeste, de realizar parcerias com construtoras para que elas fizessem obras de urbanização em troca da permissão para construir edifícios de até 12 andares na região.

Rio das Pedras foi uma das primeiras áreas da cidade a ser controlada por milícias. A atuação da vereadora contrariaria os interesses de milicianos, que seriam donos de imóveis no local.

A origem das milícias

Muitas vezes, as milícias são tratadas como uma novidade surgida no Rio de Janeiro nos anos 2000, mas especialistas no tema apontam que suas raízes são mais profundas.

"Quando se cria essa categoria, parece um fenômeno novo, mas foi apenas um novo nome para um tipo de atividade que já existia na Baixada Fluminense [na região metropolitana do Rio] desde os anos 1950, em que grupos de extermínio já agiam como protomilícias e cobravam taxas de comerciantes locais para manter a ordem", diz Misse.

Alves afirma que, a partir de meados dos anos 1990, estes grupos mudaram de perfil - até então formados majoritariamente por civis, eles passaram a ter entre seus membros cada vez mais agentes públicos de segurança e ganharam força atuando também na política.

"Com o controle de um território urbano, eles passam a oferecer o acesso a eleitores e vendem votos de áreas inteiras para quem paga mais", diz o sociólogo.

A socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Cidadania na Universidade Candido Mendes (CESeC) e ex-diretora do sistema prisional do Rio de Janeiro, diz que, em princípio, "havia a crença que estes grupos tinham bons propósitos".

"Políticos chegaram a transmitir a ideia de que, como a polícia não podia dar segurança, a própria população estava se organizando para fazer isso, mas, com o tempo, ficou claro que eram grupos armados que estavam submetendo comunidades inteiras a um regime de terror e cometendo todo tipo de crimes", diz Lemgruber.

A CPI de 2008, instaurada após funcionários do jornal "O Dia" terem sido torturados por milicianos, foi um ponto importante para essa mudança de percepção.

A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro informou à BBC News Brasil que, entre 2006 e setembro deste ano, 1.709 pessoas foram presas por ligações com milícias.

No entanto, Lemgruber faz críticas ao real efeito da CPI e da atuação do Estado contra estes grupos.

"A CPI mostrou que temos um problema de grandes proporções, durante algum período pessoas foram presas, mas nada foi feito além disso", afirma a socióloga.

"Algumas medidas simples poderiam ter sido tomadas. As corregedorias das corporações deveriam ter aberto investigações para verificar se agentes suspeitos tinham rendimentos para levar a vida que tinham. Estes grupos precisavam ser sufocados financeiramente, mas isso nunca aconteceu, porque não há interesse. Ou melhor, há muitos interesses escusos entremeados aí."

A dimensão das milícias

Estudos apontam que as milícias cresceram bastante desde a conclusão da CPI. Um levantamento do MPE (Ministério Público Estadual) do Rio de Janeiro revelado em abril pelo jornal "O Globo" mostra que, nos últimos oito anos, as milícias mais do que dobraram sua área de atuação na zona oeste do Rio de Janeiro.

Em 2010, grupos paramilitares controlavam 41 comunidades e favelas cariocas nesta região da cidade. Hoje, são 88.

Por sua vez, um levantamento do site G1 feito com base em dados do MPE, da Polícia Civil, da Secretaria de Estado de Segurança e do IBGE aponta que, em 2008, as milícias estavam em 161 favelas da região metropolitana fluminense. Dez anos depois, já estão em 37 bairros da cidade e 165 favelas.

Estes grupos teriam 2 milhões de pessoas sob sua influência, em uma área de 348 km², uma expansão ocorrida não só na zona oeste, mas também na Baixada Fluminense e no município de Itaguaí, a 69 km do Rio.

Na avaliação de Alves, da UFRRJ, as milícias representam hoje um perigo maior do que o tráfico de drogas.

"O poder deles é incomparável, têm um portfólio de negócios em sua base e estão dentro do Estado. Eles elegem políticos, o tráfico não. Veja que, para a investigação sobre a morte da Marielle chegar a alguma coisa, foram necessários nove meses. Não sei se isso terá algum resultado, mas mostra o poder que as milícias têm hoje."

Misse, da UFRJ, concorda que os grupos paramilitares são um problema de segurança pública "mais grave do que o tráfico, porque envolve agentes e ex-agentes públicos".

"Hoje em dia, há um discurso que legitima esse tipo de atuação, de que isso é algo eficiente para controlar a criminalidade, algo que o tráfico não tem", afirma.

"As milícias continuam se espalhando e parecem ter um projeto de expansão, de ampliar seu poder por meio da política, conferindo a ela uma proteção por dentro do Estado."