As crianças mortas no massacre do Sri Lanka: 'Meu filho não sabia o significado da palavra bomba'
Acredita-se que um quinto das vítimas de ataques a bomba sejam crianças - todas da primeira geração que cresceu livre da violência da guerra civil que marcou país por 30 anos.
Vestidos com a melhor roupa para participarem da missa de Páscoa, dezenas de crianças morreram ou ficaram feridas no massacre no Sri Lanka, que viu terroristas explodirem igrejas e hotéis de luxo há uma semana.
Essas crianças faziam parte da primeira geração que nasceu e cresceu livre da violência de uma guerra civil que assolou o país por décadas, mas que foi controlada com um acordo de paz selado em 2009.
As histórias desses meninos e meninas que perderam suas vidas ou que ainda lutam para sobreviver depois dos ataques faz parte de narrativa devastadora e, ao mesmo tempo, bastante familiar para o povo cingalês.
A BBC News conta, nesta reportagem, a história de algumas dessas crianças.
Quando Sneha Savindri Fernando foi à Igreja de São Sebastião, em Negombo, no oeste do país, ela estava com a cabeça em outro lugar. Tinha passado semanas organizando o próprio aniversário, o de número 13. Uma festa que não conseguiu celebrar.
"Ela era como um passarinho. Adorava dançar, dançava por qualquer coisa. Se você a pedisse para dançar, ela pulava dentro de sari ou de saia longa", diz sua mãe, Nirasha Fernando.
Sneha, a mãe e os vizinhos, Gayani e Tyronne, foram todos juntos de bicitáxi à igreja. Apenas Nirasha voltou com vida para casa.
Sneha é uma das vítimas do homem-bomba que entrou na igreja da comunidade de Negombo, em Katuwapitiya, no dia 21 de abril.
Cinco ataques simultâneos em outros lugares do país foram registrados, além de duas explosões posteriores.
Cheio de crianças
Uma das primeiras coisas que chamaram atenção dos serviços de emergência foi a grande quantidade de crianças entre os mortos.
Ainda não é sabido o número total de vítimas - o governo chegou a reduzir em 100 os registros -, mas funcionários do governo acreditam que crianças representam mais de um quinto dos mortos.
Isso aconteceu porque os terroristas agiram na manhã do domingo de Páscoa, importante data para os católicos e feriado em muitos países. Além das igrejas, os restaurantes dos hotéis de luxo alvos das explosões estavam cheios de hóspedes tomando café da manhã.
Na casa da família Fernando, prevalece o vazio.
A mãe de Sneha, que também ficou ferida, olha com angústia para a foto da filha. Um fragmento da bomba lhe arrancou parte do lábio superior e ela própria vai carregar para sempre uma cicatriz, uma espécie de lembrança forçada da sua perda.
"Em casa, a chamávamos de duwani (filha). Era a mais velha dos meus filhos. Eu a ninei para dormir... A segurei nas minhas mãos... Criei com tanto amor e agora ela se foi", lamenta a mulher.
Sneha estava sentada no terceiro banco da frente da igreja quando a bomba explodiu. O dano no corpo da menina foi tão severo que ela foi velada num caixão fechado. "Nem pude ver o rosto dela", diz a mãe, com o olhar vazio.
O corpo de Sneha foi velado em casa.
Na sala de uma outra casa em Negombo, a dor também é visível. Há quatro caixões abertos, um do lado do outro. Três deles com corpos de crianças: os irmãos Rashini Praveesha, de 14 anos, Shalomi Himaya, de nove, e Shalom Shathiska, de sete anos.
Os parentes, em estado de choque, vagam pela casa como se quisessem, a todo tempo, confirmar se o que viam era realmente verdade.
Uma idosa, parente da família, chora de dor. "Shalom! Shalom! O menor, nosso bebê", diz ela, quase caindo dentro do caixão. "Você sempre foi tão desobediente, sempre gostou de fazer piadas. Bebê, por favor, levante-se!"
Diante da cena, outros parentes se apressam e a levam para outro cômodo, enquanto ela continua chorando.
Uma história parecida ocorre na cidade costeira oriental de Batticaloa, no outro lado do país. Assim como em Negombo, Batticaloa está coberta de fotografias dos mortos, muitos deles crianças.
Uma das fotos é a de John Jesuran Jayaratnam, de 13 anos, na qual aparece com sua melhor camisa vermelha e suspensórios. A foto foi tirada na saída da escola.
A mãe de John conta que eles estavam juntos enquanto esperavam para entrar na igreja de Zion, antes da missa de Páscoa. Se separaram quando ele foi beber água no bebedouro.
Foi a última vez que viu o filho com vida.
Fora da casa do garoto, uma cesta de basquete pregada na parede balança com o vento. "Ele gostava muito de basquete. Eu costumava sentar aqui e vê-lo jogar", conta a mãe, enquanto olha pela janela da sala.
Para os cingaleses, a perda de tantas crianças tem sido um dos lados mais doloridos do massacre - e tem dominado as discussões sobre o assunto.
Nos dias seguintes ao dos atentados, muitas versões circularam no WhatsApp e no Facebook sobre o porquê da morte de tantas crianças.
Começaram a circular histórias de que as bombas explodiram quando havia muitas crianças no altar aguardando benção ou para cantar em corais.
Tem sido difícil confirmar tais detalhes e poucas dessas histórias parecem ter alguma base.
Geração do acordo de paz
No Sri Lanka, essas crianças são o que se pode chamar da primeira geração "ingênua". A guerra civil, a divisão, a brutalidade que por anos marcaram o país não faziam parte da realidade nem do dia a dia dessas crianças.
Em poucas semanas, o país completa 10 anos do fim da guerra que durou 30 anos, no qual forças governamentais enfrentaram o grupo separatista Tigres do Tâmil. Foi um conflito com bombas em todo o país e uma violência brutal dos dois lados, por logos anos.
As outras gerações foram testemunhas dessa guerra. Por isso, a morte de muitas dessas crianças no domingo de Páscoa teve um significado diferente porque, pela primeira vez em décadas, a violência voltou a aterrorizar o Sri Lanka
Não significa que não tenha havido conflitos nesse período em que prevaleceu o acordo de paz. Há registros, por exemplo, de ataques muçulmanos a igrejas.
As tensões religiosas estavam aumentando, mas jamais numa escala como a que o país viu no dia dos ataques.
Para Ajith Danthanarayana, diretor do hospital infantil Lady Ridgeway em Colombo, as consequências dos ataques com bombas são uma amarga recordação do passado.
"São crianças. Não têm raça nem religião. Sofremos 30 anos com uma guerra e também com um tsunami. Temos superado tantas coisas ruins, conseguimos tolerar e fazer o que é melhor para nossos pacientes, isso é tudo que podemos fazer", disse Danthanarayana.
Entre outras pessoas na mesma sala, a sensação é parecida.
"Ao menos estava acostumado com isso. Todos sabiam ou ouviram falar de pessoas que foram mortas pela violência. Vemos constantemente imagens na televisão e nos jornais. Mas como explicar isso a meu filho?", pergunta Wasantha Fernando, em pé, ao lado da cama do filho no hospital.
Akalanka, de sete anos, é um dos que ficaram feridos com a explosão na igreja de São Sebastião. Uma bola de ferro atingiu a perna dele, fraturando o osso e alojando no músculo. Ele ia ganhar alta, mas ainda não sabia por que ainda estava no hospital.
"Nos ouviu mencionar a palavra 'bomba' e está nos perguntando o que significa. Disse a ele que é algo que faz um ruído forte. Não sabe que pode matar, mas tenho que explicar isso a ele, porque muitos dos amigos e companheiros morreram", diz a mãe.
Minimizar o trauma
Explicar aos filhos, muitos dos quais estão traumatizados, o que está acontecendo no Sri Lanka é o segundo desafio da população que ainda se recupera da brutalidade dos ataques.
Várias organizações, entre elas a Unicef, estão publicando diretrizes para ajudar adultos a falar com filhos sobre o que aconteceu de uma maneira apropriada para cada idade.
Esses guias têm sido compartilhados amplamente nas redes sociais e também com pais e equipe médica nos hospitais, além de professores.
Voltar à escola é, dizem especialistas, uma boa maneira de ajudar às crianças a processar o episódio.
Dayani Samarakoon, que ensina crianças com idade entre sete e 12 anos numa escola de Colombo, conta como tem se preparado para a volta dos seus alunos. A estratégia, diz ela, vai depender da idade.
"Os pequenos podem ou não saber alguma coisa do que aconteceu. Eles vão falar comigo sobre o que sabem, parte do que eles sabem pode ser a verdade ou pode ser um boato, mas o importante é ouvi-los e ouvir seus medos", diz ela.
*Com informações da BBC Mundo.
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