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CPI da Covid: de 'pênis na Fiocruz' a cloroquina na OMS, as notícias falsas citadas na comissão

Mayra Pinheiro admitiu à CPI que foi autora de áudio que dizia que "há um pênis na porta da Fiocruz" - Jefferson RudyAgência Senado
Mayra Pinheiro admitiu à CPI que foi autora de áudio que dizia que 'há um pênis na porta da Fiocruz' Imagem: Jefferson RudyAgência Senado

Letícia Mori - Da BBC News Brasil em São Paulo

26/05/2021 12h13

Em quatro semanas de depoimentos, a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid teve que lidar não só com contradições e versões conflitantes de testemunhas para os mesmos fatos, mas com informações falsas — fake news — que circulavam pela internet e acabaram encontrando palco na investigação do Senado.

As fake news não estiveram presentes apenas nas falas de testemunhas - chegaram a embasar falas e perguntas de alguns senadores.

A presença de informações falsas foi tão marcante que o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), disse na semana passada que talvez fosse necessário contratar uma agência de checagem de fatos para verificar em tempo real se o que está sendo dito é verdade.

A comissão não chegou a fazer a contratação, mas checagens jornalísticas independentes, como as da Agência Lupa, encontraram informações falsas tanto na fala de testemunhas como o ministro da saúde Marcelo Queiroga quanto na de senadores como Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luis Carlos Heinze (PP-RS).

'Pênis' na porta da Fiocruz e aplicativo TratCov

O depoimento da secretária do ministério da Saúde Mayra Pinheiro,ontem, foi especialmente marcado por uma discussão envolvendo notícias falsas.

Pinheiro, apelidada de 'Capitã Cloroquina' pela sua defesa do uso do medicamento de efeito não comprovado contra a covid, confirmou à CPI que foi realmente ela quem fez um áudio que circulou pelas redes sociais espalhando notícias falsas sobre a Fiocruz.

No áudio, Pinheiro dizia que "tudo deles envolve LGBT" e que "eles têm um pênis na porta da Fiocruz", que "todos os tapetes das portas são a figura do Che Guevara" e as "salas são figurinhas do Lula Livre, Marielle Vive".

A Fiocruz não tem uma figura de um pênis na entrada nem tapetes nas portas com a imagem de Che Guevara. Também não há envolvimento da fundação em campanhas de apoio a Lula ou sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.

Questionada pelo senador Randolfe Rodrigues se ainda pensava dessa maneira, Pinheiro afirmou que o áudio era antigo e que "nessa época isso era constatação de fatos".

"Existia um objeto inflável em comemoração a uma campanha na porta da entidade", disse ela.

Uma checagem da Agência Lupa mostrou que pelo menos outras cinco das declarações feitas pela secretária continham informações falsas.

Pinheiro afirmou que o aplicativo TrateCov não foi lançado, e que houve uma "extração indevida de dados por um hacker", que depois ela nomeou como sendo o jornalista Rodrigo Menegat.

Mas o TrateCov foi efetivamente colocado no ar para auxiliar médicos em Manaus, com direito a um programa sobre seu uso na TV Brasil.

Também não houve hackeamento nem extração indevida de dados por parte de Menegat - o jornalista acessou o código da página que estava público, segundo a Agência Lupa, processo que pode ser feito em qualquer site e que não é ilegal.

Pinheiro também citou três notícias falsas sobre a OMS (Organização Mundial de Saúde). Disse que a entidade "retirou a orientação desses medicamentos [cloroquina e hidroxicloroquina] para tratamento da Covid", que indica amamentação por mães soropositivas e que afirmou que o lockdown é responsável pela miséria.

A OMS nunca indicou cloroquina para tratamento de covid-19 e declarou em 2020 que não havia eficácia comprovada do medicamento contra o coronavírus.

A entidade também não indica a amamentação por mães soropositivas em qualquer caso, deixando claro que isso não é seguro. A posição da OMS é que, em locais onde o acesso a recursos é muito restrito e muitas crianças morrem por desnutrição, como em alguns países do continente africano, é preferível que as mães amamentem os bebês nos primeiros seis meses a deixá-los passar fome.

A OMS continua indicando medidas de isolamento social e lockdown para combater a pandemia. E embora reconheça que populações possam ter dificuldades devido à medidas, a entidade afirma que é responsabilidade dos governos cuidar para garantir a segurança alimentar dos mais vulneráveis.

A BBC Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre as afirmações da secretária, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem.

Eficácia de medidas de isolamento

As medidas de isolamento foram tema de outras afirmações inverídicas na CPI.

Em seu depoimento, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello afirmou que não existe comprovação científica para eficácia de medidas de isolamento contra a covid, o que é incorreto.

"As medidas de isolamento não são também, da mesma forma que outros medicamentos, outras ações, também não são cientificamente comprovadas", afirmou Pazuello no dia 20 de maio.

Na verdade, diversos estudos já comprovaram a eficácia das medidas. Entre eles, estão um estudo publicado na revista científica The Lancet, feito com dados de 131 países, um estudo na Science e um estudo na International Journal of Infectious Diseases.

STF e a atuação do governo federal

Algumas notícias falsas foram citadas por mais de uma testemunha. Tanto o ex-ministro Pazuello quanto o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disseram que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o governo "não pode intervir nos Estados" para ajudar no combate à pandemia.

"A decisão do STF em abril de 2020 limitou ainda mais a atuação do governo federal nessas ações. Não há possibilidade do Ministério da Saúde interferir na execução das ações dos Estados na saúde sem usurpar as competências dos Estados e municípios", afirmou Pazuello na primeira parte de seu depoimento, em 19 de maio.

Isso não procede. O STF não impediu que o Governo Federal tomasse ações de combate à pandemia ou limitou sua atuação, pelo contrário. A corte confirmou no ano passado que os municípios, Estados e a União têm competência "concorrente" para ações de saúde pública - ou seja, que a responsabilidade pelo combate à covid é dividida pelas diversas instâncias governamentais.

O Supremo também decidiu que os Estados e municípios também podem, tanto quanto o governo federal, decretar medidas de isolamento social, quarentenas e restrições de transporte. O governo Bolsonaro argumentava que somente a União poderia fazê-lo.

Fake News pautando perguntas

Não foram apenas as testemunhas que foram confrontadas com a inveracidade de suas informações.

Alguns senadores membros da CPI também basearam falas e perguntas em notícias falsas.

Ao questionar o executivo da Pfizer Carlos Murillo, o senador governista Marcos Rogério (DEM-RO) afirmou que a informação que tinha "é que a vacinação nos EUA não começou em dezembro".

Rogério questionava Murillo sobre o cronograma de entregas da Pfizer apresentado junto com as propostas de compra, em 2020 — que o governo rejeitou.

No entanto, a informação de que a vacinação nos EUA começou no dia 14 de dezembro de 2020 foi amplamente divulgada na época. Ela começou com vacinas da Pfizer/BioNTech, alguns dias depois de a FDA (agência regulatória americana) aprovar, em 11 de dezembro, uma autorização emergencial para o seu uso.

Rogério também apresentou informações equivocadas quando disse, na terça (25/05), que a cloroquina ainda "faz parte do protocolo de tratamento contra covid dos Estados" e citou, entre outros, São Paulo e Bahia.

O governo do Estado de São Paulo emitiu uma nota afirmando que "nenhum medicamento sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19 foi adotado em São Paulo" e que o "senador mente em CPI sobre protocolo de uso de cloroquina em SP" e "manipula informações".

Segundo o governo de São Paulo, a cloroquina é usada para diversas outras doenças (artrite reumatoide, lúpus, artrite idiopática juvenil, dermatomiosite, polimiosite e malária), para as quais há eficácia comprovada, e que a distribuição do remédio é feita para uso contra essas enfermidades, e não para covid.

Em junho do ano passado, a Bahia admitia o uso do medicamento apenas para casos graves, mas disse à Folha de S. Paulo que ignoraram a orientação do Ministério da Saúde para ampliar o uso também para casos leves por falta de comprovação científica.

Em julho de 2020, uma nova portaria da Secretaria da Saúde da Bahia foi publicada deixando claro que não há recomendação do uso de cloroquina contra covid, porque os estudos mostraram que não há eficácia comprovada e pode haver efeitos colaterais adversos.

A BBC News Brasil procurou o senador sobre os episódios, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Combate às fake news

Notícias falsas sobre o coronavírus como as citadas durante a CPI da Covid são abundantes nas redes sociais e no Whatsapp desde o início da pandemia.

Para apurar os possíveis responsáveis por disseminar mentiras no contexto de crise sanitária, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou um requerimento para que a CPI das Fake News compartilhe informações com a CPI da Pandemia.

Randolfe citou exemplos de mentiras que precisam ser combatidas, como a notícia falsa de que haveria instalação de "chips" por meio das vacinas e que imunizantes que usam a tecnologia de RNA mensageiro, como a da Pfizer, seriam capazes de "alterar o DNA". Ambas as afirmações são falsas, como mostrado nesta reportagem da BBC.

O senador também solicitou documentos sobre mais de 30 canais de vídeo no YouTube que, durante a instalação da CPI, removeram quase 400 vídeos de fake news sobre a covid-19.

Randolfe afirmou que "canais de apoiadores do bolsonarismo no YouTube têm promovido uma limpa de vídeos sobre tratamento precoce de sua base de vídeos" e citou um levantamento do site Congresso em Foco que identificou que 385 vídeos sobre tratamento precoce saíram do ar entre 14/4 e 6/5.

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.