Por que bispos americanos querem impedir Biden de comungar
Quando Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos, em janeiro deste ano, ele se tornou apenas o segundo católico em toda a história americana a ocupar o cargo. O primeiro havia sido John Kennedy, que governou o país de 1961 a 1963.
Mas enquanto muitos católicos celebraram a vitória de Biden, sua presença na Casa Branca gerou o que alguns bispos americanos descrevem como situação "difícil": Biden apoia o direito ao aborto, que é legal nos EUA, mas condenado pela Igreja Católica.
Essa postura levou parte da liderança da Igreja americana a propor que Biden — um católico fervoroso, que vai à missa todos os domingos, costuma citar passagens bíblicas e o papa Francisco em seus discursos e já afirmou que sua fé católica serve como "âncora" — e outros políticos que defendam o direito ao aborto sejam impedidos de receber a comunhão.
O debate vem gerando divisões e voltou a ganhar atenção nesta semana, com uma reunião virtual da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA (USCCB, na sigla em inglês) na qual o principal tema em discussão é o significado da Eucaristia e como abordar a situação de políticos católicos pró-aborto.
Os 280 bispos com direito a voto deverão decidir se devem pedir à Comissão para Doutrina (que aconselha em questões ligadas à fé e moral) a elaboração de um documento esclarecendo quem pode receber a comunhão e as circunstâncias em que o sacramento pode ser negado.
Depois de horas de debate e discordâncias, os religiosos votaram nesta quinta-feira (17/6), segundo dia do encontro. O resultado final deverá ser anunciado nesta sexta (18/06), no encerramento da reunião.
Caso a proposta seja aprovada, a Comissão para Doutrina começará a elaborar o documento, que será colocado em votação na próxima reunião da USCCB, em novembro. Para ser aprovado, o documento final precisará do apoio de pelo menos dois terços dos votantes.
Mas, na prática, a decisão final sobre permitir ou não que Biden (ou qualquer outro fiel) receba a comunhão continuará nas mãos do bispo responsável por cada diocese.
Em Washington, onde o presidente costuma frequentar a igreja Holy Trinity (Igreja Católica da Santíssima Trindade), no bairro de Georgetown, o arcebispo Wilton Gregory já indicou que não pretende impedir Biden de comungar. O mesmo deve ocorrer em Wilmington, no Estado de Delaware, onde Biden tem residência e frequenta a missa em alguns fins de semana.
"Legalmente, (a decisão da USCCB) não tem impacto", diz à BBC News Brasil o professor de teologia e estudos religiosos Massimo Faggioli, da Universidade Villanova, na Pensilvânia, que é autor do livro "Joe Biden and Catholicism in the United States" ("Joe Biden e o Catolicismo nos Estados Unidos").
No entanto, o simples debate sobre a possibilidade de uma regra nacional impedindo que políticos pró-aborto recebam a comunhão tem um forte significado simbólico e revela não apenas a divisão interna e polarização política na Igreja americana, mas também suas divisões em relação ao Vaticano.
"Os bispos que são os mais vocais na defesa dessa proposta são os mesmos que nos últimos oito anos foram os mais vocais contra o papa Francisco em diversos temas", observa Faggioli. "E fazem parte da mesma maioria que nos últimos 10 ou 20 anos se tornou incrivelmente politizada e alinhada com o Partido Republicano."
Oposição ao papa Francisco
A ala conservadora da Igreja Católica americana reúne pelo menos metade dos bispos do país e é conhecida por sua oposição ao papa Francisco, que defende uma postura menos rígida em relação a fiéis que se afastaram da doutrina.
Desde que assumiu o comando do Vaticano, em 2013, o papa deu destaque a questões sociais, incentivando os fiéis a cuidar dos pobres, acolher imigrantes e combater mudanças climáticas, demonstrou tolerância a homossexuais e abriu caminho para que católicos divorciados ou casados novamente recebam a comunhão.
Mas muitos de seus críticos temem que a visão de uma Igreja mais liberal em relação a esses temas leve a um enfraquecimento da religião.
Assim como os bispos americanos, o papa Francisco também se opõe ao aborto, considerado pela Igreja um "pecado mortal". Mas o papa e outras lideranças no Vaticano preferem o caminho do diálogo em vez de uma proibição como a proposta por parte dos bispos nos Estados Unidos.
Críticos dessa proposta dizem que impedir políticos católicos de comungar por causa de sua posição em relação ao aborto tem motivação mais política do que religiosa.
O papa já chegou a declarar que "a Eucaristia não é um prêmio para os santos, mas sim o pão dos pecadores".
Em uma rara intervenção pública do Vaticano sobre a disputa na Igreja americana, o cardeal Luis Ladaria, secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, enviou uma carta ao arcebispo de Los Angeles, José Gomez, que é presidente da USCCB, pedindo cautela e alertando para as consequências de apressar uma decisão.
Ladaria pediu diálogo entre os bispos americanos para "preservar a unidade da conferência episcopal diante de discordância sobre esse assunto controverso".
Em uma demonstração da divisão interna provocada pelo tema, 67 bispos americanos pediram que a discussão fosse adiada até que pudessem participar de um encontro pessoalmente. Mas os idealizadores da reunião virtual desta semana decidiram manter o tema na agenda.
Debate antigo
O debate sobre negar a comunhão a políticos pró-aborto não é novo nos Estados Unidos. Há décadas a ala conservadora da Igreja Católica no país busca fazer da oposição ao aborto sua prioridade e questão religiosa central.
Em 2004, um grupo de bispos conservadores já havia tentado impedir que o então candidato presidencial democrata John Kerry recebesse o sacramento por esse motivo. Kerry era o primeiro católico a concorrer à Presidência por um dos grandes partidos americanos desde o assassinato de Kennedy.
Na época, a posição dos bispos conservadores americanos tinha apoio do cardeal Joseph Ratzinger, que em 2005 se tornaria o papa Bento 16. Mas a decisão final foi a de que cada bispo teria autonomia para decidir se permitiria ou não políticos pró-aborto de comungar.
O próprio Biden já teve a comunhão negada em uma igreja na Carolina do Sul em 2019, quando era candidato, por causa de sua posição em relação ao aborto. Sua chegada à Casa Branca aumentou a urgência com que alguns setores da Igreja no país veem a questão.
Biden substituiu o republicano Donald Trump, que durante seu governo adotou diversas medidas restringindo o aborto e nomeou centenas de juízes contrários à prática para os tribunais do país, entre eles três para a Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça americana e que tem o poder de decidir o futuro do aborto no país.
Desde que assumiu o poder, Biden reverteu algumas das restrições adotadas durante o governo Trump. Além disso, sua presidência marca um momento em que os democratas vêm fortalecendo sua defesa do aborto, posição atualmente compartilhada por quase todos os políticos do partido.
"Na época (de Kerry) a situação era diferente, porque não era um presidente católico, (apenas) um candidato", salienta Faggioli.
"Agora, seria uma declaração de guerra da Conferência dos Bispos contra o presidente, e também uma demonstração de que eles não levam a sério o que vem do Vaticano a respeito dessa questão."
Impacto
Para Faggioli, o esforço em curso nos Estados Unidos é único em termos históricos e "mais americano do que católico".
"Há exemplos no passado de relações difíceis entre a Igreja Católica e chefes de Estado", ressalta. "Mas nunca houve esse tipo de discussão pública de alto nível, envolvendo toda uma conferência de bispos, para planejar punir um presidente católico por causa de suas opiniões."
O atual movimento é encabeçado por nomes influentes da ala conservadora da Igreja Católica americana. Além de Gomez, fazem parte dessa lista o cardeal Raymond Burke e o arcebispo Salvatore Cordileone, de San Francisco, entre vários outros.
"É fundamentalmente uma questão de integridade", declarou Cordileone em maio, em um recado não apenas para Biden, mas também para a presidente da Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados), a democrata Nancy Pelosi, que é católica, defende o direito ao aborto e frequenta a igreja em San Francisco.
"Na liturgia Católica, receber o Sacramento Sagrado é abraçar publicamente a fé e os ensinamentos morais da Igreja Católica, e desejar viver de acordo (com eles)", afirmou Cordileone.
Muitos dos defensores da proibição temem que o exemplo dos políticos possa influenciar outros fiéis. Mas vários dos opositores da proposta acreditam que os líderes religiosos devem conversar com esses políticos reservadamente sobre como seu apoio ao aborto vai contra os valores da Igreja.
Para Faggioli, o debate atual traz o risco de alienar ainda mais uma parcela dos fiéis que já vêm se afastando da Igreja.
"O simples fato de que houve essa reunião e a narrativa em torno desse debate é um problema muito sério. Porque dá a impressão de que esta é uma convenção de um partido político."
Faggioli ressalta que um documento defendendo a exclusão de Biden ou de outros políticos católicos da Eucaristia terá efeito na população católica geral do país.
"O que Biden diz sobre aborto é o que cerca de metade dos católicos americanos também acreditam", afirma.
Segundo o instituto de pesquisas Pew Research Center, 67% dos católicos americanos dizem que Biden não deve ser impedido de comungar por causa de sua posição sobre o aborto. Outra pesquisa do instituto, de 2019, indica de 56% dos católicos americanos acreditam que o aborto deveria ser legal na maioria dos casos.
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