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Myanmar: 1 ano após golpe, país enfrenta guerra civil

Homem ferido é levado até um local seguro durante manifestação contra os militares em Yangon - março de 2021 - Getty Images
Homem ferido é levado até um local seguro durante manifestação contra os militares em Yangon - março de 2021 Imagem: Getty Images

Soe Win, Ko Ko Aung e Nassos Stylianou

Da BBC Burmese e da Equipe de Jornalismo de Dados da BBC *

01/02/2022 09h59Atualizada em 01/02/2022 10h14

Myanmar está sendo palco de batalhas cada vez mais mortais entre militares e grupos organizados de civis armados, sugerem novos dados.

Muitos daqueles que enfrentam os militares são jovens que arriscam suas vidas desde que a junta militar tomou o poder há um ano.

A intensidade e extensão da violência - e a coordenação dos ataques da oposição - indicam uma mudança no conflito: de uma revolta para uma guerra civil.

A violência está agora espalhada por todo o país, de acordo com dados do grupo de monitoramento de conflitos Acled (sigla em inglês para "Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos").

Informações coletadas em campo também indicam que os combates se tornaram cada vez mais coordenados e alcançaram centros urbanos que não apresentavam resistência armada aos militares antes.

Embora o número preciso de mortos seja difícil de verificar, a Acled - que baseia seus dados na imprensa local e em outros relatórios - coletou números que sugerem que cerca de 12 mil pessoas foram mortas por violência política desde que os militares tomaram o poder em 1º de fevereiro de 2021.

Os confrontos se tornaram cada vez mais mortais, mês a mês, desde agosto.

Logo após o golpe, a maioria das mortes de civis ocorreu quando as forças de segurança reprimiram manifestações em todo o país.

Agora, no entanto, o número crescente de mortos é resultado do combate - já que os civis pegaram em armas -, conforme mostram os dados da Acled.

A chefe de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, concordou em entrevista à BBC que o conflito em Myanmar, também conhecido como Birmânia, deve agora ser chamado de guerra civil - e pediu ao Conselho de Segurança da ONU que tome "medidas mais fortes" para pressionar os militares a restaurar a democracia.

Ela disse que "faltou urgência" à resposta internacional à crise e descreveu a situação como "catastrófica", alertando que o conflito agora ameaça a estabilidade regional.

Os grupos que lutam contra as forças do governo são conhecidos coletivamente como PDF (Força de Defesa do Povo, na sigla em inglês) - uma rede informal de grupos de milícias civis composta em grande parte por adultos jovens.

Membros do PDF treinam com armas improvisadas, no estado de Kayin, em novembro de 2021 - Getty Images - Getty Images
Membros do PDF treinam com armas improvisadas, no estado de Kayin, em novembro de 2021
Imagem: Getty Images

Hera [nome fictício], de 18 anos, tinha acabado de terminar o ensino médio quando se juntou aos protestos contra o governo após o golpe.

Ela suspendeu os planos de entrar para a universidade para se tornar comandante de pelotão do PDF no centro de Myanmar.

Ela conta que foi motivada a se juntar ao PDF após a morte da estudante Mya Thwe Thwe Khaing, que foi baleada durante os protestos de fevereiro de 2021.

Os pais de Hera ficaram inicialmente preocupados quando a filha começou um curso de treinamento de combate no PDF, mas cederam quando perceberam que ela estava falando sério.

"Eles me disseram: 'Se você quer realmente fazer isso, vá até o fim. Não desista no meio do caminho'. Conversei então com meu treinador e me juntei totalmente à revolução cinco dias após o treinamento."

Antes do golpe, pessoas como Hera haviam crescido desfrutando de um certo grau de democracia.

Elas se ressentem profundamente com a tomada do poder pelos militares e estão sendo apoiadas e treinadas por milícias de orientação étnica nas regiões de fronteira, que lutam contra as forças armadas há décadas.

Guerra civil em Myanmar - como os dados foram coletados

A BBC usou dados da Acled, organização sem fins lucrativos que coleta dados sobre violência política e protestos em todo o mundo. Ela se baseia em reportagens, publicações da sociedade civil e de organizações de direitos humanos e atualizações de segurança de organizações locais e internacionais.

Como o conflito em Mianmar mudou? - BBC - BBC
Imagem: BBC

Embora a Acled não verifique independentemente cada reportagem, ela diz que seus dados sobre fatalidades são atualizados continuamente à medida que novas informações sobre eventos e estimativas de fatalidades se tornam disponíveis.

Isso ocorre devido à dificuldade em capturar todos os eventos relevantes em uma zona de conflito, onde os relatórios muitas vezes podem ser tendenciosos ou incompletos, assim como à política da Acled de registrar as estimativas mais baixas relatadas.

No entanto, é impossível obter uma imagem totalmente precisa dos eventos, já que ambos os lados estão envolvidos em uma acirrada guerra de propaganda. O trabalho dos jornalistas também é fortemente restrito.

O serviço de notícias birmanês da BBC também coletou informações sobre mortes decorrentes de confrontos entre os militares de Myanmar e o PDF de maio a junho de 2021. E o levantamento se mostrou consistente com as tendências dos dados da Acled.

O PDF é composto por pessoas de todas as esferas sociais - agricultores, donas de casa, médicos e engenheiros. Eles estão unidos pela determinação de derrubar o regime militar.

Há unidades em todo o país, mas é significativo que os jovens da maioria étnica Bamar nas planícies centrais e nas cidades estejam assumindo a liderança - unindo forças com jovens de outras etnias.

Esta é a primeira vez na história recente de Myanmar que as forças armadas enfrentam oposição violenta de jovens Bamars.

"Muitos [civis] entraram nessas milícias ou criaram as chamadas forças de defesa do povo", disse Bachelet à BBC.

"É por isso que há muito tempo venho dizendo que, se não formos capazes de fazer algo mais forte em relação a isso, vai ecoar demais a situação da Síria."

Nagar, um ex-empresário que controla várias unidades do PDF na região de Sagaing, no centro de Myanmar, disse à BBC que não é uma luta com condições iguais.

O PDF começou apenas com catapultas, embora desde então tenha feito seus próprios mosquetes e bombas.

Os militares fortemente armados têm poder de fogo aéreo - usado com frequência nos últimos meses. E podem adquirir armas de países que apoiam abertamente a junta - incluindo Rússia e China.

Uma investigação da Myanmar Witness - compartilhada com a BBC - confirmou que veículos blindados russos foram descarregados em Yangon há algumas semanas.

Mas a força do PDF reside no apoio proveniente das comunidades locais. O que começou como uma resistência popular se tornou mais organizado, ousado e aguerrido.

O NUG (Governo de Unidade Nacional, na sigla em inglês) exilado ajudou a criar e liderar algumas unidades do PDF - e mantém contato com outras de forma mais informal.

O PDF se concentrou em alvos fáceis das forças do governo, como delegacias e postos avançados mal equipados.

Eles apreenderam armas e bombardearam empresas de propriedade da junta, incluindo torres de telecomunicações e bancos.

Nagar diz que o PDF não tem escolha a não ser assumir por conta própria o futuro do país. "Acho que resolver os problemas em uma mesa redonda não funciona mais hoje. O mundo está ignorando nosso país. Então vou me armar."

Manifestantes usaram estilingues contra as forças de segurança que se aproximavam - Yangon, março de 2021 - Getty Images - Getty Images
Manifestantes usaram estilingues contra as forças de segurança que se aproximavam - Yangon, março de 2021
Imagem: Getty Images

Hera, que se juntou ao PDF com suas irmãs mais velhas, diz que o objetivo delas é "extirpar a ditadura militar".

"Os militares mataram pessoas inocentes. Eles destruíram os meios de subsistência, propriedades e bens da população. E aterrorizam o povo. Não posso aceitar isso de forma alguma."

Houve vários incidentes de assassinatos em massa de civis pelos militares, incluindo a morte de pelo menos 40 homens em julho - e o assassinato de mais de 35 homens, mulheres e crianças em dezembro.

A BBC conversou com um homem que sobreviveu a outro ataque dos militares - também em dezembro - se fingindo de morto.

Seis homens - incapazes de fugir quando os soldados entraram em sua aldeia em Nagatwin, no centro de Myanmar - foram mortos. Três deles eram idosos e dois tinham problemas de saúde mental, dizem os moradores.

O homem que sobreviveu afirma que as tropas da junta estavam procurando por combatentes da resistência.

A viúva de uma das vítimas diz que o corpo do marido apresentava sinais de tortura.

"Eles mataram um idoso que não conseguia nem sequer falar bem o suficiente para explicar. Nunca vou esquecer. Choro sempre que penso nisso", disse ela à BBC.

Os militares raramente dão entrevistas, mas em uma entrevista exclusiva à BBC no final de 2021, o porta-voz da junta, Zaw Min Tun, descreveu os integrantes do PDF como terroristas - usando o rótulo como justificativa para a ação contra eles.

"Se eles nos atacam, ordenamos que [nossas tropas] respondam. Estamos tentando proteger o país e as regiões usando a força apropriada para alcançar um nível razoável de segurança", disse ele.

Myanmar - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

É difícil estimar o número exato de combatentes de cada lado. Oficialmente, o número de militares de Myanmar é de cerca de 370 mil soldados - mas na realidade pode ser muito menor. Houve menos recrutamentos nos últimos anos - e também deserções desde o golpe.

Da mesma forma, é difícil obter uma avaliação precisa do número de pessoas no PDF.

Além das unidades formadas pelo NUG, alguns membros do PDF estão sendo treinados, abrigados e até armados por grupos étnicos armados que operam ao longo da fronteira. Alguns dos grupos haviam assinado acordos de cessar-fogo com governos anteriores -que agora foram quebrados.

O PDF pediu desculpas publicamente às milícias étnicas por ter acreditado anteriormente na propaganda militar de que os grupos queriam desmantelar o país. O PDF está clamando agora unanimemente por um futuro estado federal em que todos tenham direitos iguais.

Uma freira - que se ajoelhou diante de policiais em março de 2021 para proteger manifestantes após o golpe militar - disse à BBC que a instabilidade política desde a tomada do poder teve um efeito sísmico na vida do povo.

"As crianças não podem ir à escola. Educação, saúde, (aspectos) sociais, econômicos e de subsistência - tudo retrocedeu", diz a irmã Ann Rose Nu Tawng.

"Algumas (mulheres) abortaram porque não podiam sustentar (os filhos) devido à economia pobre. Os pais não podem orientar seus filhos adequadamente por causa das dificuldades de subsistência."

Mas a freira diz que admira os jovens que se juntaram à luta.

"Eles são corajosos. Não se importam [de sacrificar] suas próprias vidas trabalhando para alcançar a democracia, para o bem do país, para obter a paz e libertar este país [do regime militar]. Eu os elogio, tenho orgulho deles e os respeito."

* Com reportagem adicional de Rebecca Henschke e Becky Dale e design de Jana Tauschinski