Tensão no Ocidente: Ucrânia é alfinetada por país que foi '1º aliado' na guerra
O relacionamento entre a Polônia e a Ucrânia vem mostrando sinais de atrito. O presidente polonês, Andrzej Duda, e o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki, assim como outros representantes do campo do governo ultranacionalista do país, passaram a se referir aos ucranianos numa linguagem dura, que costumava ser direcionada durante campanhas eleitorais apenas aos vilões tradicionais da direita polonesa: a Rússia e a Alemanha.
Na última quarta-feira (20), o presidente Duda comparou a Ucrânia a um "homem que está se afogando": "Uma pessoa que se afoga é extremamente perigosa, porque pode puxá-lo para as profundezas [...]. Ela pode simplesmente afogar o salvador."
Na noite do mesmo dia, o premiê da Polônia, Morawiecki, anunciou que Varsóvia não pretendia mais fornecer armas para a Ucrânia e que, em vez disso, se concentraria na reconstrução de seus próprios arsenais.
Todas essas declarações seriam impensáveis em 2022, quando a Ucrânia passou a travar uma luta pela sua sobrevivência frente aos invasores russos. Desde o início, a Polônia se posicionou como um dos aliados mais firmes dos ucranianos. A ajuda militar, financeira e humanitária que forneceu totaliza cerca de 4,27 bilhões de euros (R$ 22 bilhões) à Ucrânia, de acordo com um levantamento do Ukraine Support Tracker, que quantifica a ajuda prometida pelos governos a Kiev. Além disso, a Polônia acolheu cerca de 1,5 milhão de refugiados ucranianos.
'Teatro político'
As declarações foram dadas após o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, ter se queixado publicamente na véspera, na Assembleia Geral da ONU, sobre a decisão de alguns países europeus de proibir a importação de cereais produzidos por agricultores ucranianos. Zelenski classificou a medida como um "teatro político" e acusou alguns países europeus de mostrarem solidariedade em público, enquanto indiretamente tomam decisões que favorecem a Rússia.
O chefe de Estado não nomeou nenhum país específico. Mas em Varsóvia suas palavras foram entendidas como uma afronta à Polônia, como um dos países que baniram a importação de grãos ucranianos.
Por sua vez, o ministro da Agricultura polonês, Robert Telus, alertou que a agricultura ucraniana representa uma "ameaça", não apenas para os "Estados da linha de frente", mas para toda a Europa. "A Ucrânia não pode aderir à UE sem condições", enfatizou. Já o líder do partido governista polonês, o ultranacionalista Lei e Justiça (PiS), Jaroslaw Kaczynski, afirmou num comício eleitoral que a concorrência com os produtos agrícolas ucranianos "destruiria" a agricultura polonesa.
Adeus à ajuda polonesa?
Desde o início da invasão russa à Ucrânia, além da ajuda militar, financeira e humanitária, a Polônia também desempenhou um papel fundamental no lobby junto a outros membros da UE e da Otan para o envio de mais armas aos ucranianos. Mas questões de política interna e uma eleição crucial para o atual governo no horizonte acarretaram numa mudança de retórica e de ação por parte de Varsóvia.
"O PiS está sacrificando as relações com a Ucrânia", foi o comentário do jornalista e cientista político Bartosz Wielinski no jornal liberal Gazeta Wyborcza nesta quinta. Num artigo, ele descreveu o que chamou de uma "política destrutiva que beira a traição". Em sua opinião, a disputa pelos grãos ucranianos é apenas um pretexto: "Na campanha eleitoral, o PiS não vai se deter diante de nada. Para mobilizar seus eleitores, Kaczynski, Morawiecki e Duda estão alimentando um conflito com o país vizinho e o sentimento antiucraniano."
PiS retorna à retórica antiucraniana
O PiS, que governa a Polônia há oito anos, apresenta-se numa situação eleitoral delicada nas pesquisas para a eleição parlamentar de 15 de outubro. O partido arrisca perder votos cruciais para a legenda Confederação, um agrupamento nacionalista ainda mais à direita que o PiS, que usa abertamente slogans antiucranianos em sua campanha eleitoral. Para reconquistar esses eleitores, o PiS voltou às suas origens, abraçando uma antiga linha cética em relação à Ucrânia.
Os agricultores e a população rural representam um importante eleitorado para a direita polonesa. Esses grupos temem que seus meios de subsistência estejam ameaçados pelos grãos e outros produtos agrícolas baratos vindos da Ucrânia.
Esta foi forçada a recorrer a rotas terrestres alternativas para transportar seus cereais, depois que a Rússia encerrou unilateralmente um acordo que vinha permitindo navios carregados de grãos zarparem de portos do Mar Negro. Desde então, a rota se tornou arriscada demais para os exportadores ucranianos. Poloneses, húngaros e eslovacos argumentam que os grãos baratos da Ucrânia que cruzam suas fronteiras e deveriam estar seguindo para outros países, na prática estão sendo vendidos em seus territórios.
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Mas questões históricas também alimentam a retórica polonesa. O campo nacionalista de direita sempre encarou com ceticismo uma aproximação com a Ucrânia.
Eventos sangrentos no fim da Segunda Guerra Mundial e nos primeiros anos do pós-guerra ainda hoje lançam uma longa sombra no relacionamento entre os dois países. A partir de 1943, nacionalistas do Exército Insurgente Ucraniano (UPA) atacaram e expulsaram os habitantes de aldeias polonesas na região de Volhynia, hoje território da Ucrânia.
A tentativa de limpeza étnica tinha como objetivo criar condições para a construção de uma nação ucraniana após a guerra. Segundo historiadores, cerca de 100 mil poloneses foram assassinados até o fim da guerra. Cerca de meio milhão fugiram ou foram expulsos. Entre 10 mil e 15 mil ucranianos morreram em ações de represália dos guerrilheiros poloneses.
O PiS mantém contatos estreitos com associações polonesas que representam descendentes de antigos habitantes expulsos de Volhynia. Somente a guerra de agressão russa contra a Ucrânia colocou os problemas de reconciliação com o passado em segundo plano —mas, pelo que parece agora, apenas temporariamente.
Kiev e Varsóvia podem voltar à razão?
O líder da oposição liberal polonesa, Donald Tusk, descreveu o novo conflito retórico entre os dois países como um "escândalo moral e geopolítico". Num comício eleitoral na cidade de Kalisz, ele falou de um "desprezível circo antiucraniano" que está sendo encenado pelo PiS.
Mas também há os primeiros sinais de distensão e indicações que o PiS só pretende fazer uso dessa retórica enquanto durar a campanha. O presidente Duda suavizou algumas declarações do governo nesta semana, argumentando que a ameaça de Morawiecki de parar de fornecer armas a Kiev foi "interpretada da pior maneira possível".
Na minha opinião, o primeiro-ministro quis dizer que [a Polônia] não transferirá para a Ucrânia o novo armamento que estamos comprando atualmente à medida que modernizamos o exército polonês.
Andrzej Duda, presidente da Polônia, à TVN24
"Quando recebermos o novo armamento dos EUA e da Coreia do Sul, liberaremos o armamento atualmente usado pelo exército polonês. Talvez o transfiramos para a Ucrânia", acrescentou.
Marta Prochwicz-Jazowska, analista do escritório de Varsóvia do think tank German Marshall, afirma não ser do interesse nacional polonês interromper o fornecimento de armas à Ucrânia: "As observações do primeiro-ministro indicam principalmente que ele está interessado em se concentrar em reabastecer o suprimento interno de armas do país, porque a Polônia não tem mais os recursos e precisa de um grande processo, que levará muito tempo."
"Há também uma eleição nacional se aproximando. Portanto, não há dúvida de que o primeiro-ministro, ao aparecer na televisão, estava fazendo campanha para sua própria base eleitoral. A campanha tem sido extremamente suja, e os políticos, incluindo o partido governista PiS, estão usando os agricultores poloneses para angariar votos", prevê Prochwicz-Jazowsk.
Os ministros da Agricultura de ambos os países conversaram ao telefone na quinta-feira, informou a agência de notícias polonesa PAP. O embaixador ucraniano Vasyl Zvarych também tentou fazer as pazes. "Essa foi uma boa oportunidade para trocar pontos de vista. Não há crise. Estamos seguindo em frente", explicou o diplomata.
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