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Esforço de Bolsonaro para controlar Forças Armadas traz preocupação à democracia, dizem políticos

Bolsonaro decidiu colocar de vez o centrão dentro do Palácio do Planalto, com a deputada Flávia Arruda (PL-DF) ocupando a interlocução política do governo - Ueslei Marcelino/Reuters
Bolsonaro decidiu colocar de vez o centrão dentro do Palácio do Planalto, com a deputada Flávia Arruda (PL-DF) ocupando a interlocução política do governo Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Raquel Miura

Correspondente da RFI em Brasília

30/03/2021 06h55

Presidente tenta afagar centrão, cedendo a pasta responsável pela articulação política, mas principal mudança visa ampliar poder sobre a caserna. No Itamaraty, a escolha de um chanceler pouco expressivo gera dúvidas sobre mudança na atuação ideológica na política externa.

Pressionado diante de tantos fracassos, especialmente os mais de 300 mil mortos da covid-19 no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) decidiu colocar de vez o centrão dentro do Palácio do Planalto, com a deputada Flávia Arruda (PL-DF) ocupando a interlocução política do governo. Porém, a dança de cadeiras que se viu ontem em seis ministérios deixou no ar muito mais do que uma tentativa de orquestrar a relação com o Congresso: a intenção de garantir a influência do presidente nos quartéis.

"Recebo a notícia da troca no Ministério da Defesa como todos os democratas, com receio. A despeito de não considerar o ministro Braga Netto, que comandará a pasta, um extremista, pelo contrário, toda sua trajetória é de um homem comprometido com a Constituição, parece haver uma clara tentativa do presidente Bolsonaro de um maior controle ideológico sobre o Ministério da Defesa e, consequentemente, sobre as Forças Armadas", disse à RFI o vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL/AM).

Para ele, o sinal de alerta não vem da caserna em si, mas da atitude do presidente: "Acho que as Forças Armadas brasileiras hoje têm maturidade democrática, têm plena consciência do seu papel de respeito à Constituição dentro da institucionalidade. Mas, de qualquer forma, qualquer movimento de um presidente da República tentando um controle ideológico das Forças Armadas é algo que deve ser encarado com atenção. Não sou um alarmista, mas há receio. Exige vigilância do que vai acontecer daqui por diante."

O general Fernando Azevedo e Silva, demitido do Ministério da Defesa, era visto como um anteparo das Forças Armadas às interferências políticas, inclusive dificultando a intenção de Bolsonaro de trocar o comando do Exército, o que muitos dão como certo agora. A avaliação é de que os atuais comandantes militares, por declarações dadas inclusive em meio aos protestos antidemocráticos do ano passado, não estavam dispostos a aderir a um discurso mais radical, que chegava a invocar o Exército se Bolsonaro estivesse sob ameaça política.

Quem assume a Defesa, general Braga Netto, coordenava até aqui a Casa Civil e é um dos militares mais próximos do presidente, despachando ao lado do chefe, o que eleva o sinal de alerta, apontou à RFI o deputado Fábio Trad (PSD-MS): "Recebi com apreensão e de certa forma pessimismo a troca no comando do Ministério da Defesa. O ex-ministro Fernando Azevedo é daqueles quadros militares que comungam do entendimento de que as Forças Armadas devem servir à nação, ao país, ao Estado brasileiro, jamais às contingências de políticas de governo. O ministro que assumirá o comando da pasta já está num posto político. E, se continuar com esse objetivo à frente do Ministério da Defesa, vai comprometer constitucionalmente a natureza das Forças Armadas. Isso pode gerar um desequilíbrio gravíssimo no Estado democrático de direito".

Bolsonaro também mudou outro nicho delicado de sua gestão, ao demitir José Levi da AGU (Advocacia-Geral da União). Ele irritou o presidente ao não assinar uma ação contra governadores que definiram medidas de isolamento. Assim, a peça jurídica, com rubrica única do presidente, e sem amparo do órgão responsável foi rejeitada de pronto pelo Supremo Tribunal Federal. A AGU volta a ser ocupada pelo sempre fiel André Mendonça, que estava no Ministério da Justiça para onde vai agora o delegado Anderson Torres, atual secretário de Segurança do Governo do Distrito Federal e que é próximo dos filhos de Bolsonaro.

"Eles vão usar as instituições, ministro da Defesa, da Justiça para perseguir adversários, e proteger os seus, que é o que eles vêm fazendo ao longo de todo esse tempo, de certa forma querendo colocar uma imposição ideológica de extrema direita, inclusive rifando pessoas de centro, de centro-direita, e até de direita moderada, o que não se justifica num Estado democrático de direito. Oposição e situação têm que ser respeitadas, e não a vontade do filho e da ala ideológica 'olavista'. Nós estamos sendo pilotados hoje por uma ala perigosa, mais perigosa que o coronavírus", disse à reportagem o deputado Fausto Pinato (PP-SP).

Pior chanceler da história

A reforma ministerial desta semana começou com vistas a baixar a artilharia política pesada contra o Itamaraty, diante do insucesso retumbante de Ernesto Araújo em todas as frentes em que se meteu. A gota d'água foi a pressão dos senadores, que ameaçaram barrar nomes para embaixadas depois de mensagens do chanceler com críticas à presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Kátia Abreu (PP-TO).

Natalia Calfat, analista de Relações Internacionais, considera que a situação de Araújo se tornou insustentável perante as dificuldades do Brasil em meio à pandemia de coronavírus.

Sobram exemplos do que o Brasil perdeu com Araújo. Como olavista, ele rompeu com uma longa tradição diplomática dentro do Itamaraty. Especificamente com respeito à pandemia, a sua omissão e sua postura de confronto com o maior parceiro comercial brasileiro, a China, se não retardou o envio de insumos para a produção da vacina em território nacional, no mínimo emperrou os canais de diálogo e de alavancagem política num momento crítico de negociação não só no Brasil, mas no mundo todo.
Natalia Calfat

Outro analista ouvido pela RFI, William Gonçalves, professor de Relações Internacionais da UFRJ, disse que a atuação de Araújo foi um desastre político, econômico e diplomático: "O legado deixado pelo chanceler Ernesto Araújo é o de terra arrasada. Ele praticamente retirou o Brasil do Mercosul, ele esvaziou o Mercosul. Ele esvaziou a Unasul. Ele tirou praticamente o Brasil do Brics. Seguiu cegamente a política de Donald Trump, mesmo quando isso implicava em ofender os interesses de brasileiros, de setores produtivos do Brasil. Portanto, o que o chanceler Araújo deixa de herança, deixa de lembrança, é um desastre nunca visto em lugar nenhum. É uma terra arrasada. Se era isso o que ele pretendia fazer, ele pode se orgulhar, porque a obra dele foi completa".

Previsão de poucas mudanças nas relações exteriores

Um ponto grande de interrogação se faz diante do escolhido para assumir as Relações Exteriores, o embaixador Carlos Franco França, que não é ligado às ideias de Olavo de Carvalho, o guru ultrarradical do clã Bolsonaro, como era o ex-chanceler. Porém, como seu antecessor, tem pouca experiência em cargos de comando. Sua carreira se deu especialmente na área de cerimonial, considerada importante nesse setor, mas sem holofotes.

"As informações dão conta de que apenas recentemente ele foi promovido a embaixador. E ele nunca ocupou cargos de comando no exterior. Embora ele seja considerado discreto, tem a imagem de próximo do presidente. Então, embora a mudança sugira uma janela aberta, na prática deve haver pouca mudança efetiva na área externa", antevê Natalia Calfat.

A avaliação dos especialistas é de que a atuação do Itamaraty depende muito de quem está no comando político do país, ou seja, do presidente da República. "Não acredito que o novo chanceler realizará grandes mudanças. Isso porque, nós sabemos, a política externa executada pelo chanceler Ernesto Araújo sai da cabeça do presidente Bolsonaro e também do seu filho, deputado federal Eduardo Bolsonaro, e de seu círculo. Ernesto Araújo não improvisou nada. Ele fez o que esse círculo de fanáticos determinou que ele fizesse", afirmou William Gonçalves. Para o professor da UFRJ, a gestão Bolsonaro conseguiu a proeza de brigar com as duas maiores potências da atualidade.

"A conjuntura internacional hoje se caracteriza pela polarização entre Estados Unidos e China, inclusive com a assunção de Joe Biden. E o Brasil, como está? Nós estamos, veja só, contra os dois. Não estamos bem com os americanos e estamos de mal com a China. É uma situação muita atípica essa das relações internacionais do Brasil atualmente", conclui o professor da UFRJ.

O governo Bolsonaro teve início em 1º de janeiro de 2019, com a posse do presidente Jair Bolsonaro (então no PSL) e de seu vice-presidente, o general Hamilton Mourão (PRTB). Ao longo de seu mandato, Bolsonaro saiu do PSL e ficou sem partido até filiar ao PL para disputar a eleição de 2022, quando foi derrotado em sua tentativa de reeleição.