Inimizade à parte: por que EUA alertaram Rússia sobre ataque em Moscou?

Quinze dias antes do ataque à sala de show russa Crocus City Hall, Washington tinha alertado Moscou sobre um atentado iminente —apesar da animosidade entre os EUA e a Rússia. Isso aconteceu porque a doutrina do "dever de avisar" norte-americano pressupõe o compartilhamento de informações pela inteligência do país, mesmo que a ameaça tenha um rival como alvo.

Uma frase curta do porta-voz do Departamento de Defesa dos Estados Unidos pode ter passado despercebida após o ataque que tirou a vida de 143 pessoas. Mas as palavras resumem a doutrina da inteligência norte-americana em relação a potenciais atentados terroristas:

Tínhamos o dever de alertá-los sobre as informações que tínhamos e que eles claramente não tinham.
John Kirby, em 25 de março, à imprensa

Os serviços de inteligência dos EUA sabiam que uma ameaça pesava sobre a capital russa e informaram Moscou quase duas semanas antes do ataque, em 7 de março. A Rússia foi avisada que "extremistas planejavam ter como alvo grandes concentrações de pessoas em Moscou, incluindo concertos".

A doutrina do "dever de avisar", que John Kirby cita quase involuntariamente na sua declaração, é aplicada pelos EUA desde o final da década de 1990 e foi oficialmente estabelecida em 2015.

Protocolo de ação

A prática se generalizou após os ataques cometidos pela Al-Qaeda contra as embaixadas dos EUA na Tanzânia e no Quênia, em 7 de agosto de 1998. Foi a partir desse período que a inteligência norte-americana decidiu compartilhar com outros países, amigos ou inimigos, qualquer informação que indicasse ameaças a vidas humanas inocentes.

Em 2015, esta doutrina foi formalmente adotada por uma diretriz oficial do diretor de Inteligência Nacional James Clapper. Na ocasião, ele afirmou que a comunidade de inteligência norte-americana tinha a "responsabilidade de alertar pessoas dos EUA e de fora dos EUA sobre ameaças iminentes de assassinato intencional, lesões corporais graves ou sequestro".

A ordem também detalha casos específicos em que os agentes de inteligência podem renunciar ao seu dever de alertar e permanecer em silêncio, apesar do perigo iminente. Na rede social X, Laura Thomas, ex-oficial da CIA, detalhou como funciona o protocolo. Ela explica que, para que a partilha de informação ocorra, "a ameaça deve ser confiável" e associada a detalhes quanto ao "momento, localização e/ou identidade dos autores do ataque".

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Protocolo de ação com telegrama. Uma vez transmitido o aviso e tomadas todas as precauções necessárias para não comprometer fontes, a utilização do protocolo "dever de avisar" é registrada em um telegrama diplomático, para manter um registro oficial.

'Diplomacia de inteligência'

Foi exatamente isso o que aconteceu duas semanas antes do ataque em Moscou. Washington não decidiu alertar um país hoje considerado adversário por simples altruísmo. Alertar os adversários para uma ameaça iminente é certamente uma questão ética "que visa prevenir a morte de vítimas inocentes", reconhece Laura Thomas, mas é sobretudo uma forma "de enviar uma mensagem aos nossos adversários sobre o que sabemos sobre eles e sobre os nossos valores".

O "dever de avisar" é, portanto, um meio para a inteligência norte-americana exercer um poder psicológico sobre os serviços de inteligência estrangeiros e afirmar sua superioridade, mostrando-lhes que são capazes de saber mais do que eles sobre o que está a acontecer no seu próprio país. Num contexto internacional sob alta tensão, o compartilhamento de informação torna-se uma verdadeira estratégia de política internacional, que o chefe da CIA, William Burns, qualificou como "diplomacia de inteligência", em um artigo na revista Foreign Affairs, publicado em janeiro.

Mas avisar um adversário sobre um perigo iminente não garante que ele levará a ameaça a sério. O ataque ao Crocus é o exemplo perfeito: Vladimir Putin ignorou as informações fornecidas por Washington, chamando-as de "chantagem pura e simples" e acusando-lhes de querer "intimidar e desestabilizar a sociedade russa". O exemplo ilustra o quanto o tema é delicado: levar a sério a advertência de um país inimigo pode ser visto como uma admissão de fraqueza.

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Nem sempre os EUA consideram as informações de rivais

Em janeiro, os serviços de informação norte-americanos alertaram as autoridades iranianas sobre uma ameaça terrorista em Kerman, onde um duplo ataque suicida, reivindicado pelo grupo Estado Islâmico em Khorassan, deixou 94 mortos durante uma cerimônia de homenagem ao general Qassem Soleimani, morto por um ataque americano em 2020.

Na rede social X, o ex-diplomata Stephen McFarland, que foi embaixador dos EUA na Guatemala, lembrou até que ponto as autoridades venezuelanas ficaram "desconfiadas e incrédulas" depois de terem sido informadas de uma ameaça terrorista que tinha como alvo o presidente Hugo Chávez, como parte de um protocolo "Dever de avisar" em 2004.

Entretanto, os próprios EUA por vezes não levaram a sério as informações que lhe foram transmitidas. Em 2011, os serviços de inteligência russos alertaram Washington sobre a presença no seu território de um extremista islâmico de origem quirguiz. Após investigações, os serviços norte-americanos concluíram que Tamerlan Tsarnaev não representava uma ameaça. No entanto, dois anos depois, com a cumplicidade do seu irmão Djokhar, ele foi o autor do atentado à bomba na Maratona de Boston, que matou três pessoas e feriu centenas de outras.

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