Um ano depois: guerra entre Israel e Hamas cria uma nova geração de sobreviventes
Para muitas famílias israelenses e palestinas, esta segunda-feira (7) guarda terríveis memórias do pior ataque terrorista da história de Israel e que acabou desencadeando a guerra em Gaza entre o Exército e o grupo islâmico Hamas. Passado um ano deste trágico episódio, o cenário de crise se alastra na região, onde relatos pessoais e o testemunho de jornalistas de guerra ajudam a contextualizar as dificuldades enfrentadas em ambos os lados e como uma luta de narrativas ajuda a inflamar os debates em outros países.
Maria Paula Carvalho, da RFI em Paris. Com informações dos correspondentes Sami Boukhelifa, em Jerusalém, e Al Meghari, em Gaza
Quase 1.200 pessoas morreram no massacre organizado pelo Hamas no dia 7 de outubro de 2023, cuja represália já levou a morte de mais de 41.000 palestinos, a maioria de mulheres e crianças. Após um ano de guerra, famílias estão destruídas dos dois lados da fronteira.
A franco-israelense Sabine Taasa perdeu o marido e o filho mais velho de 17 anos assassinados a tiros pelo Hamas em casa, perto de Gaza. Dois filhos menores do casal sobreviveram. "Meu filho Or foi assassinado às 6h49 com seis balas na cabeça. Tudo foi filmado e transmitido ao vivo pelos terroristas", conta em entrevista à RFI sobre o trauma que representa este dia para a família.
Os Taasa viviam em Netiv HaAsara, nos arredores de Gaza. A sobrevivente conta que no dia 7 de outubro os comandos do Hamas desembarcaram por mar e tomaram o vilarejo. Acordada pelas sirenes, tiros e explosões, Sabine rapidamente se trancou em um quarto seguro com um de seus filhos. Seus outros dois meninos estavam com o pai quando os terroristas atiraram uma granada, que explodiu sobre o estômago do marido, Gil, morto na frente das crianças.
"Meu filho Shai perdeu um olho. Ele tem muitas cicatrizes e está traumatizado. Se eu saio de casa duas ou três horas, ele entra em pânico", relata a mãe. "O outro, Koren, não gosta de olhar as pessoas nos olhos e detesta que o toquem. Ele não consegue nem falar com o psicólogo e tenho que ficar com ele nas consultas", completa. "Infelizmente, neste dia, não havia ninguém para nos proteger. Nem o Exército e nem equipes de socorro", lamenta Sabine Taasa. "Não vou ficar na cama dizendo a mim mesma: esse é o meu destino e pronto. Eu direi a verdade para o mundo inteiro", promete.
"Por que os deixei partir?"
Do outro lado desta guerra, a palestina Imane Laham conta que tinha uma família feliz, até que eles foram obrigados a sair de casa, enfrentaram a fome, o frio e as dificuldades de viver numa tenda, sob bombardeios. "Perdi dois filhos e meu marido em um ataque israelense. Mohamed tinha doze anos e minha filha Rinad 9 anos", afirma. "Nós tínhamos nos refugiado em uma barraca em Khan Younès (no sul da Faixa de Gaza). Quando soubemos que nossa casa foi bombardeada, meu marido e meus filhos quiseram ir ver como ela estava, mas quando chegaram ao local, houve um segundo ataque israelense. Os corpos deles foram encontrados desmembrados. Com o recuo do tempo, eu me pergunto por que os deixei partir?"
Uma família dizimada, uma mãe devastada e que deu a luz no meio do caos. "Quatro dias depois da morte deles, eu tive um menino. Eu estava em choque e o bebê nasceu prematuro, mas graças aos médicos e a Deus, tudo deu certo", diz. Imane ainda vive em um campo de refugiados, ao lado de muitas outras viúvas e de órfãos.
"Crianças sem infância"
Depois de passar quatro dias em Gaza, o diretor de comunicações do Unicef Palestina, Jonathan Crickx, relata à RFI o que viu. O representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância diz estar chocado com o nível de destruição. "Encostei meu telefone na janela do carro e pude filmar por dez minutos antes de ver um prédio ainda intacto. Casas, lojas, edifícios [tudo] destruído. E isso é algo que você não consegue ver quando apenas assiste a um vídeo. A imensidão e extensão da destruição", destaca.
Para Jonathan Crickx, ver crianças brincando no meio de explosões e dos escombros mostra como a guerra pode se tornar banal. "São crianças que não têm infânica. Elas não vão à escola para aprender. Estas crianças realizam tarefas de sobrevivência", descreve. "Na maioria das vezes, elas carregam baldes ou velhos galões de plástico de 15 a 20 litros. Elas transportam água, comida, tentam reunir o que podem para ajudar a alimentar as suas famílias," relata.
As equipes do Unicef também puderam ir ao hospital Kamal Adwan, único estabelecimento pediátrico em funcionamento no norte da Faixa de Gaza. Lá, Jonathan Crickx filmou algumas cenas muito duras. "Vimos crianças que sofriam de desnutrição. Nos cuidados intensivos, vimos crianças que foram afetadas de forma absolutamente terrível, como um bebê entre 7 e 8 meses que ficou completamente desfigurado por estilhaços. É difícil assistir a tudo isso. Esta criança não merece estar neste estado", lamenta.
"Nova geração de sobreviventes"
O jornalista brasileiro Nathan Klabin aceitou testemunhar à RFI Brasil o que viu neste um ano de conflito. "Ninguém imaginava que a guerra seria fácil, nem que duraria tanto tempo. Acho que, tirando a guerra de independência de Israel, essa guerra atual é a mais longa que o país já enfrentou", diz o repórter, que cobriu o conflito. "Os custos humanos são imensos, já morreram mais de 700 soldados, a maioria reservistas, e o custo material já ultrapassa US$ 65 bilhões. Mas isso também faz parte da estratégia de países como Irã, que deseja exaurir Israel", observa.
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Quero receberDe acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos da Segurança (INSS) publicados nesta segunda-feira, desde o início da guerra, 826 civis isralenses foram mortos, 804 membros das Forças de Segurança e 68 estrangeiros, num total de 1.698 vítimas fatais. O número de feridos do lado isralense é de 19.019, incluindo 4.590 soldados.
Klabin conta que em um ano, o conflito mudou bastante. "Atualmente, o Hamas possui capacidade de operar apenas como uma guerrilha e não mais como uma organização terrorista com amplos recursos e de forma coordenada", afirma, destacando que mais de 100 reféns ainda estão nas mãos do grupo radical palestino.
O principal front da guerra se volta agora para a fronteira entre Israel e o Líbano onde, segundo o jornalista, "o grupo Hezbollah tem amplo controle e nenhuma força de paz internacional é capaz de interromper os ataques que eles fazem contra o norte de Israel e mais de 60 mil pessoas foram evacuadas pelo Exército para áreas mais seguras". Klabin explica que estas áreas são ricas em agricultura e turismo, dois setores prejudicados com a guerra.
Em Israel, além das frentes de guerra, divisões políticas e uma crise econômica causam divisão interna. "Israel estava muito polarizado sobre o governo Netanyahu antes da guerra por razões diversas, inclusive corrupção e a tentativa de reforma do Judiciário vista como antidemocrática por partes relevantes da população e a guerra polarizou ainda mais a situação, com atenção especial para os reféns que ainda estão nos túneis do Hamas", observa Nathan Klabin. "A base da coalizão do governo Netanyahu troca favores constantemente com lideranças políticas ultra religiosas em ministérios. A questão do recrutamento de homens ultra ortodoxos também é uma questão central da sociedade israelense, uma vez que eles não servem no Exército na mesma proporção que outras populações do país. Por causa disso, setores liberais, de esquerda, e laicos estão ainda mais insatisfeitos, pois são eles que estão servindo mais no Exército por causa dos benefícios que o governo Netanyahu dá para os judeus ultra ortodoxos", aponta.
O jornalista e correspondente do TheMediaLine.org também relata que empresas de alta tecnologia estão perdendo produtividade, pois muitos funcionários são reservistas que foram chamados para lutar. "O legado do Nethanyahu teria sido de um crescimento econômico fantástico, mas antes da guerra", aponta. Porrém, "com a guerra custando tanto para tanta gente, setores da economia que apoiavam Netanyahu agora acreditam que o primeiro-ministro está apenas fazendo o que pode para se manter no poder e se proteger", diz, lembrando que "Israel teve um grande salto de desenvolvimento durante outros governos de Netanyahu, mas, com essa guerra, o legado que será lembrado vai ser o fato de ele ter falhado em proteger Israel, no 7 de outubro de 2023".
Klabin ainda lembra que enquanto o holocausto na Segunda Guerra Mundial aconteceu há mais de 80 anos e muitos dos sobreviventes já morreram ou estão idosos, esse um ano de guerra "criou uma nova geração de sobreviventes que experimentam uma ameaça existencial". Para o jornalista brasileiro baseado em Jerusalém, "em outubro de 2023, muitos israelenses entenderam, pela primeira vez, o que seus avós explicavam para eles".
O correspondente ainda destaca como o conflito entre Israel e a Palestina "é sequestrado pelas narrativas políticas de cada país, o que distorce profundamente o entendimento do que está acontecendo". De acordo com Nathan Klabin, "isso gerou uma onda de antissemitismo imensa e revelou que muitas pessoas inteligentes normalizaram conceitos antissemitas, como a ideia de que Israel mata por prazer e que os fatos apresentados por judeus não são confiáveis, mas os dados apresentados pelo ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, são inquestionáveis".
Ele ainda conta sobre como tem sido viver sob a ameaça constante entre os países vizinhos. "Eu já tive que correr para o bunker diversas vezes com minha mulher e meu filho, pois existe um medo permanente desses ataques", relata. "Enquanto o Hezbollah continua bombardeando o norte de Israel, o Hamas tenta começar uma nova intifada e muitos ataques vêm acontecendo. Neste domingo (6), um atirador palestino entrou em uma lanchonete ferindo 20 pessoas e matando uma policial de 19 anos. Enquanto em Gaza o conflito entrou numa fase de guerrilha, na Cisjordânia novos ataques como esse que acabei de relatar vêm acontecendo com frequência cada vez maior", relata.
Ouça a entrevista completa aqui.
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