Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sergio Moro e a delação premiada de Shakespeare
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As redes sociais passaram o fim de semana se esbaldando com a última bola fora do pré-candidato Sergio Moro. O ex-juiz caiu na besteira de arriscar referência literária para abordar seu tema preferido, o combate à corrupção. Se deu mal.
"Corrupção existe em qualquer lugar do mundo. Até mesmo nos países mais íntegros. Até mesmo na Dinamarca", disse Moro na quinta-feira (9) à plateia que foi ao Teatro dos Quatro, no Rio, para o tour de lançamento de seu livro, como relata a jornalista Cátia Seabra, da Folha de S. Paulo.
"Tem até aquela frase famosa, né? Tem algo de podre no reino da Dinamarca. A Dinamarca é considerado um dos países mais íntegros do mundo, mas, ainda assim, há casos de corrupção pontuais", disse.
A frase citada por Moro não foi dita por nenhum policial ou magistrado dinamarquês. Está em Hamlet, peça de William Shakespeare, escrita provavelmente em 1599. É a fala do jovem príncipe que, apesar de ainda não saber que seu falecido pai tinha sido envenenado pelo próprio irmão para usurpar o reino, começa a desconfiar que algo estranho aconteceu.
Não se refere, portanto, a lavagem de dinheiro ou qualquer coisa que tenha a ver com a integridade de um país, como imagina o ex-magistrado. Por isso, a saraivada de piadas e críticas contra Moro.
Houve quem o defendesse, alegando que o conhecimento literário não é um dos pré-requisitos fundamentais para alguém se candidatar à Presidência da República. Certamente não. Mas, diferente da vez em que não conseguiu lembrar uma biografia para citar a Pedro Bial ou da ocasião em que escorregou ao chamar Edith Piaf de "Piá", agora a gafe de Moro revela algo perturbador.
Não é só no âmbito do Judiciário que ele enxerga tudo pelas lentes do combate à corrupção, é na vida. O homem que usa a frase hamletiana para abordar os índices de corrupção na Dinamarca é o mesmo que imagina usar métodos sumários para acabar com a pobreza caso seja eleito presidente. Já anunciou que quer criar uma força-tarefa para combater a miséria, uma espécie de Lava Jato dos desvalidos.
Alguém poderá alegar que a desigualdade de um país nasce da ação dos corruptos. Não é verdade. Se fosse assim, nações como a Suíça - que ergueu sua economia sobre a corrupção bancária que enxaguava dinheiro de todo o mundo -, ou os Estados Unidos - que chegaram ao ponto de invadir o Iraque apenas para entregar o setor de petróleo à empresa do então vice-presidente Dick Cheney (Halliburton) - seriam campeões de desigualdade.
Talvez Moro pudesse correr ao clássico de Shakespeare não apenas para conhecer seu teor, mas para aprender com o dramaturgo sobre a complexidade humana. A obra trata de traição, vingança, dissimulação, ética, conflitos internos, sentimentos que vão muito além do embate de justiceiros contra aproveitadores malvados. Estão no cotidiano de todos.
Também a corrupção é tema de Shakespeare, mas em dimensão bem mais sofisticada do que Moro costuma perceber. Como em toda verdadeira obra de arte, ele dá dimensão humana tanto aos canalhas quanto a suas vítimas.
Espera-se que o pré-candidato do Podemos tire bom proveito da leitura.
Essa seria a única forma de Moro aprender com Shakespeare, já que uma delação premiada ou uma condução coercitiva definitivamente não vai rolar.
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