Bisbilhotagem da Abin desvirtua as tentativas de 'modernização'
O uso da Agência Brasileira de Inteligência (sic) para invadir a privacidade de brasileiros catalogados pela gestão Bolsonaro como adversários demonstra que, no Brasil, o futuro é o passado reciclado. O desperdício de verbas públicas para monitorar cidadãos por meio do celular reproduz, em versão tecnológica, uma metodologia arcaica de bisbilhotagem utilizada pelo velho Serviço Nacional de Inteligência, o SNI, órgão de espionagem da ditadura militar.
A ferramenta usada sob Bolsonaro, de fabricação israelense, foi adquirida em 2018, no crepúsculo da gestão de Michel Temer, por R$ 5,7 milhões. Não houve licitação. Tem capacidade para seguir até 10 mil celulares por ano, esquadrinhando os passos dos donos dos aparelhos. Segundo a Polícia Federal, o equipamento foi acionado pelo menos 30 mil vezes.
A maioria dos dados foi apagada. Os investigadores tentam recuperar informações perscrutando as nuvens do sistema. Por enquanto, a investigação mapeou cerca de 2 mil teleperseguições. Os alvos incluem políticos, jornalistas, advogados e magistrados, entre os quais ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Os nomes ainda não vieram à luz.
Espionagem presencial
Um dos objetivos do inquérito, tocado sob a supervisão do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, é descobrir o objetivo prático da atividade clandestina da Abin. Suspeita-se que o monitoramento do sinal dos celulares visava mapear os alvos para posterior espionagem presencial. Daí a semelhança com as atividades do SNI, que mantinha sob vigilância os inimigos da ditadura.
O escândalo revela uma grotesca volta ao passado. Entre as atribuições da Abin está a coordenação do Sisbin, o Sistema Brasileiro de Inteligência (sic). Criado em 2002, sob Fernando Henrique Cardoso, o sistema foi alterado por Lula no mês passado, por meio do decreto 11.693. A principal alteração foi a transferência da Abin do organograma do Gabinete de Segurança Institucional para a Casa civil da Presidência da República.
No momento, comanda a Abin o delegado federal Luiz Fernando Corrêa. Assumiu o cargo no último mês de maio, nas pegadas da constatação de que um apagão de desinteligência abriu as portas do Planalto para o quebra-quebra de 8 de janeiro. Corrêa assegura que a ferramenta de monitoramento que perverteu as ações da agência foi desativada em maio de 2021. Divulgou nota para informar que, hoje, a Abin opera observando "a legalidade e o Estado Democrático de Direito".
Perversão X Modernização
Se o caso da violação de privacidade executada sob Bolsonaro serve para alguma coisa é para evidenciar que a perversão dos serviços de inteligência resiste às boas intenções e às tentativas de modernização. Por ordem de Alexandre de Moraes, foram afastados da equipe de Corrêa cinco servidores. Dois estão presos preventivamente. Na casa de um deles, Paulo Maurício Fortunato Pinto, o número 3 da hierarquia da Abin, a PF apreendeu US$ 171 mil —R$ 872 mil na cotação atual.
Em 2021, publiquei na Folha reportagens sobre documentos secretos do Exército, que controla um dos órgãos de "inteligência" fornecedores de dados ao Sisbin. Os papeis revelaram que, sob Fernando Henrique, a bisbilhotagem oficial ainda classificava movimentos sociais como "forças adversas" e admitia "arranhar direitos dos cidadãos" em nome da manutenção da ordem pública.
O papelório confidencial expôs, pela primeira vez desde a redemocratização do país, os subterrâneos da máquina de espionagem do Exército. Continha cartilhas, manuais, relatórios e até fichas de informantes e colaboradores. O material aniquilou a tese segundo a qual a extinção do SNI dera lugar a um modelo de inteligência apartidário e submetido ao controle do Congresso.
"Arbítrio necessário"
Os documentos equiparavam movimentos populares como o MST ao narcotráfico e ao crime organizado. Tratava-os como adversários que, em certas ocasiões, poderiam ser "eliminados". Dizia-se, na época, que a "inteligência" oficial já havia sofrido profundas modificações. FHC criara, em junho de 1994, primeiro ano de sua gestão, a Escola de Inteligência Militar do Exército, em Brasília.
Era o ápice de um processo de reformulação iniciado em 1992. A escola deveria reeducar velhos arapongas e formar espiões para os novos tempos. Entretanto, uma das apostilas usadas num curso ministrado em setembro de 1997 continha lições contraditórias. As contradições eram mais eloquentes num capítulo dedicado à análise de "mecanismos jurídicos de ação contra a subversão".
Num trecho, a peça anotava que o Estado deve agir "sempre dentro da lei" na repressão às tentativas de "tomada do poder através de ações extralegais". Noutro, dizia coisas assim: "Sabemos que, para atingir esses objetivos, é muitas vezes necessário até arranhar direitos dos cidadãos, numa espécie de arbítrio necessário. É nesse quadro que se inserem todas as atividades de defesa da segurança interna, integradas nos diversos órgãos, militares ou não, que cuidam da segurança".
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Aplicando-se esse tipo de lógica à conjuntura do 8 de janeiro, os acampamentos que pediam golpe na porta dos quarteis e a tentativa de virada de mesa instilada por Bolsonaro poderiam ser classificadas como "arbítrio necessário" para justificar a tese do general Augusto Heleno, então chefe do GSI, segundo a qual um "ladrão" não deveria subir a rampa do Planalto.
Em 2004, durante o primeiro mandato de Lula, publiquei outra notícia constrangedora na Folha. Revelava que, na gestão petista, a Abin vigiava até os quintais do PT. Chamava-se Ronalda Barreto a protagonista da reportagem. Filiada ao Partido dos Trabalhadores, militava no sindicalismo educacional. Integrava a diretoria da Associação de Docentes da Universidade do Estado da Bahia.
Desapontada com o governo Lula, Ronalda ajudou a organizar um fórum para debater o ensino. Deu-se em Salvador, nos dias 26 e 27 de junho de 2004. Atraiu professores, funcionários e alunos de universidades baianas. O Ministério da Educação foi convidado a enviar representante. Ninguém apareceu. O governo apanhou indefeso.
"Estou chocada"
Concluiu-se no encontro de Salvador que o governo federal patrocinava a "degradação mercantilista da educação superior". Ronalda foi uma das oradoras mais enfáticas. O timbre enérgico a fez personagem involuntária de um documento confidencial. Seu nome e um resumo do que disse constaram do "relatório de inteligência número 0119/8140".
O texto ocupava uma folha de papel. Trazia no alto o timbre da Abin. Redigiu-o um espião lotado nos escritórios da agência em Salvador. Ouvida na época, Ronalda admirou-se: "O encontrou foi público. Não precisavam espionar. Estou chocada". A exemplo de Ronalda, petistas e assemelhados eram vigiados pela máquina de bisbilhotice estatal em todo o país. Havia espiões grudados nos sem-terra e nos sem-teto, nos sindicatos e nas ONGs.
Procurado, o GSI de Lula respondeu por escrito. Alegou que cabia à Abin obter e analisar dados "destinados a assessorar o presidente da República". Alegou-se que havia a necessidade de "conhecer anseios, aspirações e posições dos diversos grupos sociais". Naquela época, um cheiro de queimado emanava dos subterrâneos da Abin. Travava-se ali uma guerrilha da farda contra o paletó.
Militares X Civis
Sobreviventes do SNI, treinados no vale-tudo da linha-dura, tentavam prevalecer sobre analistas recrutados por concurso público na gestão de Fernando Henrique. A turma do paletó achava que o grupo da farda levava muito "lixo" aos arquivos da Abin. Defendia-se uma renovação da pauta. A velha guarda receava que a pregação mudancista ocultasse um desejo de expurgo.
Decorridas quase duas décadas, assiste-se à ressurreição do mesmo debate no alvorecer do terceiro mandato de Lula. Discute-se novamente a conveniência de desmilitarizar e profissionalizar um sistema de informação que negligenciou a movimentação de golpistas que se mobilizavam nas redes sociais para a "Festa da Selma". Seria celebrada, sem resistências, em três "trincheiras" —uma no Planalto, outra no Congresso e a terceira no Supremo. Deu no que está dando.
A aquisição por Michel Temer do equipamento israelense que o governo Bolsonaro usou para seguir adversários é a materialização de uma antiga pretensão da Abin de ampliar a autonomia de sua espionagem. Em 2003, no início do primeiro reinado de Lula, a Abin esboçou um plano de ampliação dos seus poderes. Entre as mudanças sugeridas na época estava a flexibilização das leis que limitam a instalação de escutas telefônicas e impedem o acesso dos espiões a dados sigilosos da Receita.
Grampos telefônicos
Chefiava o GSI o general Jorge Félix. A lei proíbe a Abin de fazer grampos telefônicos. Quando precisava grampear alguém, a agência era obrigada a recorrer à intermediação da Polícia Federal, que encaminhava a solicitação ao Judiciário. A alternativa a isso era o grampo clandestino. Félix desejava dotar a Abin da prerrogativa de encaminhar diretamente os pedidos de grampo ao Judiciário.
"Às vezes, precisamos de agilidade", dizia o general. Ele escorava a pretensão na necessidade de rastrear, por exemplo, a presença de pessoas ligadas a grupos terroristas no país. Planejava-se obter também autorização legal para que a Bin fizesse "escutas ambientais". Mais: a agência queria ter acesso a dados referentes aos contribuintes, guardados nos computadores da Receita Federal.
A Abin teve acesso a informações fiscais até 1997. Everardo Maciel, chefe da Receita na gestão de Fernando Henrique, descobriu o duto de "vazamento" por acaso. Dava-se no Serpro, empresa que processava as declarações de IR. Instituído no regime militar, o esquema foi formalmente interrompido.
Por uma premonição da sorte, os planos do general Félix não vingaram. O tamanho do estrago produzido pelo esquema ilegal de televigilância estruturado sob Bolsonaro é um mistério que a Polícia Federal ainda precisa elucidar. Mas não é absurdo supor que a violação de privacidade ultrapassaria as fronteiras do paroxismo caso a Abin dispusesse de autorização legal para grampear telefones.
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