Josmar Jozino

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Preso que não queria ser solto acompanhou 11 Copas do Mundo na prisão em SP

Lupércio Ferreira de Lima, o Mala, era um dos presos mais folclóricos e reverenciados da antiga Casa de Detenção, no Carandiru, zona Norte de São Paulo. Condenado por tráfico de drogas, ele passou a metade da vida na prisão, onde acompanhou 11 Copas do Mundo, de 1958 a 1998.

Em julho de 1998, após se decepcionar com a derrota da seleção brasileira de futebol para a França, ganhou a liberdade. Mas, com medo da violência nas ruas paulistanas e sem ter para onde ir, o Vovô da Detenção, como era carinhosamente chamado, não quis ficar longe da prisão.

Eu o entrevistei duas vezes na Casa de Detenção. Em uma delas ele me contou que foi assaltado por dois homens na saída da Estação Armênia do Metrô, na região da Luz, centro. Ficou sem R$ 10. Dias depois foi atacado na rua São Caetano, no mesmo bairro, e ficou sem mais R$ 10.

Alegou ter se assustado com a crueldade dos ladrões, atacando idosos, e impressionado com o número de crianças viciadas em crack. Na cracolândia, onde morou nos anos 1950, época em que a maconha era a droga mais usada, sentiu-se perplexo quando viu meninos fumando a pedra e comentou: "Hoje aqui sou estrangeiro. Me sinto amador".

Lupércio Ferreira de Lima, o Mala, que passou a metade da vida no Carandiru
Lupércio Ferreira de Lima, o Mala, que passou a metade da vida no Carandiru Imagem: Reprodução

Mala dispensou a ajuda de velhos amigos da avenida Duque de Caxias, no centro, que insistiam em lhe pagar hotel para pernoitar. Mesmo livre, foi dormir todas as noites em um box na Casa de Detenção, destinado à revista de mulheres e parentes dos presos nos dias de visita.

Agentes penitenciários também gostavam muito dele. E todas as manhãs, no início do turno se dirigiam até o box das revistas para servir café ao egresso. Os funcionários da tarde seguiam a mesma rotina e não deixavam de lhe oferecer o almoço e o jantar.

Antes disso, nos anos 1980, Mala havia assinado outro alvará de soltura. Mas, diferentemente de outros prisioneiros que estampam sorriso quando deixam a prisão, Lupércio saiu da Detenção com ar de tristeza. Antes de pisar na calçada da avenida Cruzeiro do Sul, prometeu: "Eu voltarei".

Dias depois, na Praça da República, centro, comprou uma porção de maconha, telefonou como anônimo para a polícia e disse que havia um homem negro vendendo drogas no local. O homem negro era ele. Fez isso para retornar à Casa de Detenção.

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Detentos tomam banho de sol na Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da capital paulista
Detentos tomam banho de sol na Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da capital paulista Imagem: 26.ago.1975/ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO

Viu o PCC crescer

Na volta ao então maior presídio da América Latina, Mala viu o PCC (Primeiro Comando da Capital) se fortalecer na unidade. Ele continuava desfrutando do prestígio de presos e agentes. A cela dele, no Pavilhão 4, era a única que podia ficar aberta 24 horas, todos os dias.

Detentos protestam contra o massacre em janela de pavilhão da Casa de Detenção do Carandiru
Detentos protestam contra o massacre em janela de pavilhão da Casa de Detenção do Carandiru Imagem: EPITÁCIO PESSOA/ESTADÃO CONTEÚDO

Lupércio passou a ser reverenciado nos anos 1950, período em que ficou recolhido no extinto Presídio Tiradentes. Na época, o uniforme dos presidiários era preto e branco, a famosa zebrinha. Na prisão conviveu com criminosos famosos, como o Bandido da Luz Vermelha, Meneguetti e Promessinha.

Em 1999, aos 80 anos, os leais amigos em liberdade fizeram de tudo para acolhê-lo. Porém, ele só dormia no box das visitas. Um dia eu o encontrei novamente na frente do presídio e ele falou: "Enquanto estive preso perdi meus pais, o único brilho de luz que eu tinha".

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Lupércio continuou dormindo na Detenção até 2001, quando desapareceu. O presídio, palco do Massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992, foi desativado em setembro de 2002 e implodido em dezembro do mesmo ano, sem deixar saudades, como disse o governador à época Geraldo Alckmin.

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