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Para gari escritor, protestos de 2013 inspiraram greve

Haroldo César, 51, é gari há 29 anos no Rio de Janeiro e já escreveu três livros - Júlio César Guimarães/UOL
Haroldo César, 51, é gari há 29 anos no Rio de Janeiro e já escreveu três livros Imagem: Júlio César Guimarães/UOL

Carolina Mazzi

Do UOL, no Rio

15/03/2014 06h00

Haroldo César já dedicou mais de metade da sua vida à profissão de gari. Aos 51 anos, a ocupação, que já exerce há 29, não é apenas fonte do seu salário, mas também inspiração para as histórias e crônicas que conta em seus livros. Desde 2008, ele já lançou três obras, todas de forma independente.

Em entrevista exclusiva ao UOL, o carioca do Engenho da Rainha, bairro do subúrbio, comenta sua paixão pela escrita, que começou em um bar perto de casa, onde se reunia para compor sambas com amigos. E a importância da sua profissão, responsável por, segundo ele, “tudo" que conquistou.

“Infelizmente, o gari é muito mais visto e lembrado na sua ausência. Quando está tudo limpinho, ninguém percebe".

Para Haroldo, as manifestações de 2013 foram grande fonte de inspiração para os profissionais que organizaram a greve durante o Carnaval deste ano, quando a cidade ficou mergulhada em lixo depois que os garis se recusaram a trabalhar, reivindicando aumento salarial.

Compositor de samba, escritor e roteirista, Haroldo ainda tem planos de lançar uma peça de teatro e mais um livro em breve. E continuará como gari, contribuindo com a sua parte para a limpeza da cidade.

Leia a íntegra da entrevista:

UOL: Como surgiu a vontade de escrever um livro?
Haroldo César:
Foi uma coisa inesperada, apesar de eu ser um amante da arte e da cultura. A minha origem na arte, na verdade, é na composição de samba. Durante muito tempo tive uma birosquinha perto de casa, onde reunia os amigos para fazer samba. O nosso sonho, na época, era gravar um disco. Mas, assim que conseguimos dinheiro para fazer, houve uma dissidência e cada um seguiu o seu caminho. Eu, que não sou músico nem cantor, fiquei perdido. E aí, fiquei naquela, “e agora, faço o quê?”.

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Nesta mesma época minha mulher comprou um computador e comecei a escrever sobre as duas coisas que mais conheço: composição de samba e vida do gari. E aí fui escrevendo, escrevendo e, como não tinha mais aquele compromisso com o samba, consegui terminar o livro “Garimpando Composições” em 2008.

UOL: Além de “Garimpando Composições”, você já lançou mais dois livros. Como você faz a publicação?
Haroldo:
Quando resolvi publicar os livros, tive que fazer uma produção independente mesmo, coloquei a mão no bolso e gastei. Aliás, gastei não, investi e fiz algumas tiragens. Aí, com o material em mãos, comecei a vender. Em 2012, lancei o “Vida de Gari, que são crônicas do dia a dia do gari, de histórias que ouvia dos colegas, ou histórias que criava eu mesmo sobre situações que poderiam acontecer na rotina de trabalho. Este livro foi muito importante para mim, porque me deu uma visibilidade maior. Dei muitas entrevistas para rádio, TV, matérias de jornal. Ele me deu uma projeção grande.

E no ano passado, lancei “Toda família sambista”, que é sobre a vida entre uma comunidade e a escola de samba do lugar. As histórias são inspiradas naquilo que eu conheço, na minha base, também moro em comunidade com escola de samba, também sou escritor e compositor. As minhas histórias são ficcionais, mas contam histórias que eu conheço.

UOL: A sua profissão é uma fonte de inspiração para você. O que representa ser gari na sua vida?
Haroldo:
Ser gari para mim representa praticamente tudo. Eu vou fazer 30 anos na empresa, entrei na função direta de gari, trabalhei por dois anos. Depois fui para o escritório, aí fui fazendo outras coisas. Mas minha vida toda está ligada a esta base, que é o gari. Então, a minha vida toda fiz poesia, música para o gari. Esse universo da limpeza urbana, do gari, é tudo na minha vida, me acompanha desde sempre. O pouco que eu conquistei na vida hoje devo à profissão. Inclusive as histórias que me inspiraram a escrever meus livros e praticamente tudo na minha vida, inclusive na parte profissional, do salário, do sustento da minha família mesmo.

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UOL: Qual a postura da população em relação à limpeza urbana da cidade?
Haroldo:
É uma cidade que vive um contraste, de uma equipe de limpeza urbana, uma empresa muito eficiente e rápida, com uma população muito pouco consciente da importância de manter a cidade limpa. É uma contradição. O morador quer manter suas casas limpas, mas a rua, que é de todos, ele não se importa. É uma incoerência. Tem ruas secundárias no subúrbio, por exemplo, que as pessoas insistem em jogar entulho. E tem um projeto na Comlurb que recolhe o entulho de dentro da casa da pessoa de graça, que é o Remoção Gratuita. Mas só que tem algumas normas, como colocar o lixo em sacos pequenos, para que o gari possa levantá-lo e jogar no caminhão. Mas as pessoas não querem saber, querem se livrar do entulho que está dentro de casa de qualquer jeito. Aí, jogam para outra parte, que é também dele, que é a rua. Como está tudo sempre limpinho, eficiente, ninguém percebe o trabalho de gari. Aí, quando para um pouquinho, você rapidamente sente falta. Foi possível ver isso muito bem durante a greve.

UOL: O que achou da greve?
Haroldo:
Essa greve foi peculiar. Porque tiveram outros períodos em que ficamos recebendo só a inflação, um salário baixíssimo e nunca tinha acontecido esta força e adesão à greve. Acredito que as manifestações que aconteceram em 2013, que mobilizaram muitas pessoas no Rio e no Brasil, foram fonte de inspiração da greve. Essa rapaziada que fez mesmo a greve, que segurou, eles nem eram do sindicato, eles fizeram uma greve na marra, sem base legal, mas ainda assim conduziram a greve, conseguiram, e a gente tem que bater palma. Saíram vitoriosos. Não quer dizer que todo ano vai fazer isso, não é por aí, mas acho que, de uma forma ou de outra, eles conseguiram mostrar para o prefeito a importância do trabalho do gari. E temos que ter melhores salários mesmo.

UOL: Você cita os protestos de 2013 como fonte de inspiração para a greve. Qual a importância, em sua opinião, das manifestações populares?
Haroldo:
Acompanhei as manifestações do ano passado. Acho que toda a mobilização é válida e foram movimentos que também se mostraram vitoriosos. Os protestos mostraram a força que as pessoas têm quando estão todas juntas. Porque se a gente deixar, as autoridades fazem o que querem. Aumentam aqui, tiram dali, porque acreditam que ninguém vai notar, ligar, se manifestar. Mas quando as pessoas começam a se mobilizar, eles já começam a dar um passo atrás. O povo tem que acordar e quanto maiores e mais pacíficas forem, melhores. O ruim é o quebra quebra. E você viu que a passagem não aumentou e todo mundo sobreviveu, o governo, as empresas... Então, talvez, não tivesse necessidade daquele aumento. E acho que isso inspirou essa rapaziada que segurou a greve. Quando está todo mundo junto, não tem como.

UOL: Quais as maiores dificuldades da cidade atualmente?
Haroldo:
Como gari, para mim, o problema mais sério que tenho contato e está precisando de uma solução é a questão dos moradores de rua. Até para a questão da limpeza urbana mesmo da cidade. Muitas vezes há uma grande dificuldade, é preciso mover um aparato grande de viaturas, tempo, dinheiro para remover as pessoas de certas localidades e estas pessoas são encaminhados para o abrigo, mas logo saem e voltam para as ruas. Você está trabalhando com pessoas. Quando você trabalha com lixo, você vai lá, tira e não tem mais. Com as pessoas, não é assim. Nós precisamos achar a solução para inseri-los em uma vida social normalmente.

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UOL: E o preconceito com os garis, ainda existe?
Haroldo:
Sim, existe. O preconceito no caso contra o gari é justamente porque ele é visto como o homem da sujeira, quando, na verdade, ele é o homem da limpeza. E acho que um dos pontos que ajuda a combater o preconceito é justamente o salário. Porque o preconceito em cima do gari é muito pela associação com o subemprego, a pobreza. Antigamente o salário era mesmo muito ruim. Hoje em dia não. A gente ganha a mesma coisa que muitos outros profissionais. E isso mostra que é uma profissão mais valorizada. A motivação da minha geração para entrar na Comlurb já foi outra, de melhorar de vida, de subir dentro da empresa. O preconceito mudou, melhorou bastante. O perfil do gari e da Comlurb mudaram muito para melhor ao longo dos últimos 30 anos. Estou há 29 anos [na empresa] e vi muita coisa mudar. Mas o que não acontece é a gente não limpar. Jamais deixamos de limpar.