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Jornalista brasileiro conta em livro como foi preso e torturado na Síria

Lúcia Valentim Rodrigues

Do UOL, em São Paulo

15/11/2012 06h00

Klester Cavalcanti foi o primeiro, e até agora único, jornalista brasileiro a entrar em Homs, na Síria, após ter sido deflagrada a guerra civil que, em números estimados por baixo, causou 36 mil mortes desde março de 2011. Há ainda 2 milhões de refugiados em países vizinhos, como o Líbano e a Turquia.

O escritor apanhou, foi torturado e passou seis dos dez dias de sua viagem preso, sem saber de que crime era acusado.

O relato do confinamento virou livro no final de outubro, pela editora Benvirá. “Dias de Inferno na Síria” (R$ 32,50, 288 págs.) tem prefácio de Caco Barcellos. Confira o trailer aqui.

“Mesmo antes de ser jornalista, tinha vontade de cobrir uma guerra. Achava legal estar no meio da confusão, onde a história está sendo feita. Não é que eu seja corajoso, mas fico tão empolgado que esqueço o medo”, conta o autor em entrevista ao UOL.

  • Arte UOL

    O trajeto feito pelo jornalista brasileiro Klester Cavalcanti ao tentar entrar em Homs, na Síria

“Queria ver as coisas com meus olhos e ouvir com meus ouvidos. Sem passar por nenhum filtro.”

Sua preocupação se justifica, já que qualquer dado sobre o conflito vem contaminado com a opinião dos rebeldes ou do governo. Assim, variam desde o número de mortos até as autorias dos atentados no país, dependendo de que lado divulga a informação.

Pelo menos tem sido assim desde que Bashar Assad tomou o poder, em 2000. Mas a luta armada se intensificou após a Primavera Árabe, em 2011, quando protestos na região acabaram por derrubar ditadores, com o egípcio Hosni Mubarak.

Na Síria, grupos de oposição também tentaram pressionar o governo de Assad, que aumentou as Forças Armadas e reprimiu os rebeldes com violência, sendo acusado de massacres de famílias inteiras, inclusive crianças e civis. Em consequência, o outro lado reagiu com igual ferocidade.

Daí os confrontos durarem madrugadas inteiras. Numa noite de bombardeios intensos, o jornalista chegou a cronometrar o intervalo de silêncio entre os ataques: 18 minutos. A guerra dorme tarde, como descreve ele no livro.

Cavalcanti viu naquele conflito a chance de mostrar a guerra de uma maneira diferente. “O que a gente acaba vendo são apenas contagens de mortos. Isso não mostra as pessoas nem como convivem com a guerra. Tem muita gente que foge e muitas que ficam, mesmo enfrentando tiroteios diários.”

Preparativos

Cavalcanti deixou a barba crescer para poder se passar por árabe, pediu o visto e a autorização para portar equipamento fotográfico e esperou. Demorou, mas saiu o aval do Ministério das Relações Exteriores.

TRECHO

“Os dois homens de roupas civis me arrancaram do banco e me forçaram a sentar numa das cadeiras. Tentei levantar, mas eles me empurraram de volta. O maior deles ajoelhou-se no chão, atrás do encosto da cadeira, e me abraçou na altura dos cotovelos, mantendo meus braços presos à cintura. O outro segurou meu rosto com as duas mãos. Ainda gritando, o chefe deu uma longa tragada no cigarro e segurou?o entre o polegar e o indicador da mão direita. Yasin traduziu os gritos: “Se você não assinar o documento, ele vai queimar seu olho com o cigarro”. Senti o calor da brasa, a 2 ou 3 centímetros da minha retina. (...) o homem pequeno desviou o cigarro e pressionou a ponta acesa na minha face esquerda.”

Embarcou, então, em maio para Beirute, no Líbano, e de lá entrou em território sírio, almejando chegar a Homs, a 180 km da capital, Damasco, onde os confrontos eram intensos e diários. Não conseguiu. Teve de voltar e tentar viajar a partir de Damasco. Mesmo com as autorizações em mãos, acabou preso, sem falar nada de árabe.

Três jornalistas estrangeiros já tinham morrido no país, dois franceses e uma americana. A situação era tensa.

Hoje seria bem mais fácil ver tanques nas ruas e bombardeios, já que a guerra entre rebeldes do ELS (Exército Livre da Síria) e forças do governo de Bashar Assad se espalharam por Aleppo, Hana e até mesmo Damasco, cidade que Cavalcanti conta no livro como numa bolha de normalidade.

Algemado e torturado

Em um trecho do livro, relata: “Pela primeira vez na vida, tive certeza de que iria morrer. Não era apenas uma sensação ou um receio. (...) Descendo os degraus de uma escada num corredor escuro e tão apertado que só permitiria passar uma pessoa por vez, sentia o cano de um fuzil empurrando minha nuca”.

Na Penitenciária Central de Homs, sua sorte foi um dos 19 confinados com quem dividia a cela falar inglês. Ammar Ali serviu de tradutor para Cavalcanti e ficaram amigos. Para ele e outros dois “irmãos de cárcere”, é que “Dias de Inferno na Síria” está dedicado.

“Ficar preso, para o livro, foi bom. Consegui apurar mais histórias do que se tivesse ficado livre. Era o dia inteiro conversando. Lá fora, ninguém passaria quatro horas falando com um jornalista estrangeiro.”

Só que, na cadeia, a tortura agora era outra, psicológica, por não saber o motivo de sua detenção nem o tempo que demoraria para sair de lá.

“Era o pior sentimento ficar preso sem saber o que ia acontecer comigo. Se eu ia sair dali a três dias ou um ano. Sem saber se estavam tentando me libertar.”

A paz

Cavalcanti, vencedor de dois Prêmios Jabuti de Literatura, sofreu, mas viu a guerra de perto, teve contato com as temidas milícias do governo, entendeu a situação dos soldados, obrigados a lutar, conheceu os refugiados que perderam tudo e viu pessoas comuns, igualmente afetadas por um conflito sem previsão de enfraquecer.

Embora ressalte não ser um sociólogo nem um historiador, ele acha “muito difícil” a paz chegar à Síria. “Só vai acabar se um dos lados não tiver mais forças e entregar os pontos. Ou se Bashar Assad concordasse em fazer um governo de coalizão.”

Não parece que o ditador está disposto a isso.

Mas, mesmo após tudo o que passou, ele incentivaria qualquer outro jornalista a viajar para a Síria. Ele mesmo ainda mantém acesa a vontade de acompanhar o cotidiano dos rebeldes, com quem havia combinado de se encontrar, mas que foi impedido pela prisão.

“Eu diria [a um repórter]: ‘Vai nessa, boa sorte’. A menos que a pessoa fosse mulher. Aí, eu diria para não ir. É muito complicado, elas ainda são vistas como seres inferiores e ouvi relatos de muitos casos de estupro.”

O livro de Cavalcanti chega a um final. Feliz, se é que se pode estragar a surpresa do leitor. Mas essa parte da história na Síria não acabou nem tem reunido cenas alegres.