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Pela 1ª vez, testemunhas dizem à Justiça que coronel Ustra comandou torturas e sequestro

Carlos Alberto Augusto, ex-delegado, que depôs nesta segunda (9), em inquérito do Ministério Público Federal que apura crimes na ditadura - Michel Filho/O Globo
Carlos Alberto Augusto, ex-delegado, que depôs nesta segunda (9), em inquérito do Ministério Público Federal que apura crimes na ditadura Imagem: Michel Filho/O Globo

Guilherme Balza

Do UOL, em São Paulo

09/12/2013 19h11

O coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra foi acusado por três ex-presos políticos, que depuseram nesta segunda-feira (9) à 9ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo, de comandar as ações de tortura e outros crimes no DOI-Codi --destacamento do Exército incumbido de prender opositores à ditadura militar--, localizado na rua Tutóia, no Paraíso, zona sul da capital paulista.

Pela primeira vez, o coronel foi responsabilizado formalmente por testemunhas, em uma ação penal, de cometer crimes durante a ditadura. As testemunhas foram José Damião de Lima Trindade, Artur Machado Schiavoni e Pedro Rocha Filho. Todos participavam de organizações que se opunham à ditadura e ficaram presos no DOI-Codi, onde foram submetidos a tortura.

Ustra é réu em ação penal movida pelo Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) junto com Carlos Alberto Augusto--conhecido como Carlinhos Metralha-- e Alcides Singillo, ambos ex-delegados do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que também serviu de aparelho de repressão a opositores do regime ditatorial.

Os três são acusados de participar do sequestro do corretor de imóveis Edgar de Aquino Duarte, desaparecido desde 1971 após ser preso em São Paulo. Dos três réus, apenas Ustra não compareceu à audiência, que foi acompanhada por ex-presos políticos e familiares de vítimas da ditadura. Segundo o advogado do coronel, ele não compareceu à audiência por estar com problemas de saúde.

Em 1964, logo após o golpe militar, Edgar foi expulso das Forças Armadas, acusado de oposição ao regime ditatorial. Exilou-se no México, depois em Cuba e só voltou ao Brasil em 1968, quando passou a viver em São Paulo com o falso nome de Ivan Marques Lemos.

A tese do MPF para conseguir a condenação dos três é que, como Edgar não foi localizado após a prisão, o crime de sequestro continua ocorrendo. Neste caso, a Lei da Anistia não se aplicaria, no entendimento dos procuradores. O MPF diz ter documentos e provas de que Edgar esteve preso no DOI-Codi e no Dops de São Paulo entre 1971 e 1973.

O MPF sustenta que Edgar foi sequestrado porque era amigo e morava com José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que foi seu colega na Marinha. Inicialmente, Anselmo era opositor do regime militar e chegou a se exiliar em Cuba. Num dado momento, passou a atuar como informante dos órgãos de repressão, já que detinha informações privilegiadas sobre as organizações de resistência à ditadura.

 

Depoimentos

As três testemunhas que depuseram hoje disseram que ficaram presas no DOI-Codi na mesma época que Edgar. Os três foram enfáticos ao afirmar que Ustra acompanhava a sessão de torturas e comandavam os demais que atuavam no DOI-Codi.

“Ele pessoalmente nunca torturava, mas eu fui torturado pelos subordinados dele, na presença dele. Ele dava ordens a todo tempo. Todos o obedeciam até com certo temor”, relatou José Damião de Lima Trindade, atualmente procurador aposentado do Estado de SP. Quando foi preso, Trindade trabalhava como jornalista na AFP (Agência France Press). Ela acredita que foi detido pelos militares por colaborar com a União Estadual dos Estudantes (UEE).

No DOI-Codi, Ustra era conhecido como Major Tibiriçá. Em seu depoimento, o jornalista Artur Machado Schiavoni, que militou na ALN (Aliança Nacional Libertadora), fundou o Molipo (Movimento pela Libertação Popular) e estudava Física na USP (Universidade de São Paulo) quando foi preso, afirmou que Ustra queria o tempo todo demonstrar nos interrogatórios que tinha “poder e ascendência” sobre o torturado.

“Ele deixava muito claro que tinha poder e ascendência sobre sua vida. É uma técnica de tortura para fazer a pessoa se render”, declarou. Schiavoni conta que, além de ser torturado por equipes do DOI-Codi, foi agredido por Ustra com um golpe conhecido como “telefone” (soco na orelha), o que lhe causou uma infecção no ouvido.

De acordo com Schiavoni, que ficou preso durante nove meses no DOI-Codi e dividiu cela com Edgar, os militares “faziam questão de dizer que o comandante era o major Tibiriçá”. Depois de deixar o DOI-Codi, Schiavoni ficou preso por cinco anos no presídio Tiradentes, na região central de São Paulo.

Também militante da ALN e fundador do Molipo, Pedro Rocha Filho afirmou que Ustra comandava o destacamento e com frequência fazia provocações aos presos. “Major Tibiriçá era claramente o comandante do DOI-Codi. Ele aparecia lá, xingava os presos”. Rocha Filho ficou preso durante oito meses e meio no DOI-Codi e depois foi transferido para o presídio do Carandiru.

Presente na audiência, o advogado de Ustra não quis dar declarações à imprensa.

Sequestro de Edgar

Trindade disse no depoimento que testemunhou que Edgar esteve preso no DOI-Codi, em uma cela diferente da sua. “Ele cantava MPB, músicas de conteúdo político. Era muito afinado. Quando ele cantava era um dos melhores momentos, se é que dá para falar isso, naquele inferno.”

Schiavoni afirmou que a situação de Edgar no DOI-Codi era sui generis, porque ele era o único preso que não era interrogado, nem chegou a receber visita de familiares. “Ele mesmo estranhava a situação dele. Eu nunca o vi recebendo ninguém.”

Rocha Filho relatou que Edgar, em várias oportunidades, interpelou Ustra a respeito da situação dele.“Ele falava ‘major, e a minha situação, como está?’ Nunca obteve resposta.”

Os dois colegas de cela acreditam que Edgar tenha sido preso por ser amigo de Anselmo, embora o próprio corretor de imóveis não tivesse informações de que teria sido preso após delação do amigo. As três testemunhas disseram que nunca mais tiveram contato com Edgar.

Schiavoni e Rocha Filho afirmaram que só estiveram um dia no Dops, onde passaram por uma dependência conhecida como “cartório”. Neste local, o processo contra os presos políticos era aberto. Nenhum dos dois se lembrou de ter visto Carlinhos Metralha

Sobre Singillo, ambos afirmaram acreditar que ele fez o registro da abertura do processo contra eles no Dops. Já Trindade, que esteve preso no Dops por 47 dias, não reconheceu Singillo e Carlinhos Metralha.

Os dois ex-delegados do Dops disseram, em entrevista após a audiência, que não conheceram, nem tiveram contato com Edgar. Segundo o procurador federal Sergio Suiama, um dos responsáveis pela ação, as próximas testemunhas irão confirmar que os dois ex-delegados do Dops foram responsáveis pela prisão do corretor.

Suiama afirmou, após a audiência de hoje, que “as testemunhas foram muito firmes e categóricas” em apontar a responsabilidade do coronel Ustra nas torturas e no sequestro de Edgar. “Era uma situação clara de sequestro mesmo. A prisão dele era clandestina, sem ordem judicial, sem qualquer espécie de pedido formal, ele nunca pertenceu a grupos armados, nunca participou de luta armada e não havia acusação contra ele.”