Por que sou um médico voluntário em Aleppo
Samer Attar*
Em Chicago (EUA)
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Ameer Alhalbi/AFP
Homem carrega criança ferida em bombardeio no bairro de Bab al-Nairab, em Aleppo, na Síria
Minha primeira experiência como médico voluntário foi no 11 de Setembro. Hoje, tentar salvar vidas na Síria é a minha causa.
O hospital onde trabalho em Aleppo, Síria, fica em um porão. O prédio acima foi bombardeado tantas vezes que os andares superiores são perigosos demais para serem usados. Barris e sacos de areia margeiam a entrada para fortificá-lo como um bunker.
Aleppo fica distante de minha casa em Chicago. Aquela cidade também conta com sua cota de sofrimento humano. Qualquer cirurgião de Chicago que atua no pronto atendimento pode atestar a violência das armas que atormenta as comunidades locais. Mas o hospital onde trabalho conta com recursos de ponta e alguns dos melhores médicos e enfermeiros do mundo. Os bisturis são afiados, as salas de operação são esterilizadas e os especialistas são abundantes.
Aleppo também conta com alguns dos melhores médicos e enfermeiros do mundo, mas há muito poucos. Eles estão exaustos, sob risco e precisam de ajuda. Esse é o motivo para ter me apresentado como voluntário para trabalho médico na Síria; mesmo as poucas semanas por ano que posso oferecer fornecem algum alívio para o punhado de cirurgiões que serve a uma população de 300 mil em uma zona de guerra. É uma responsabilidade pesada, mas sinto que não posso pedir aos líderes mundiais que coloquem a vida de seus cidadãos em risco para salvar pessoas ali se eu mesmo não estiver disposto a correr tal risco.
Minhas semanas em Aleppo são intensas. Em Chicago, onde sou especializado em cirurgia oncológica, eu atendo um paciente de cada vez. Em Aleppo, cuido de 20 ao mesmo tempo. Você vive sua vida um massacre após o outro: de crianças na escola, ou de famílias dormindo em casa ou fazendo compras em um mercado. Nós ouvimos o som dos jatos, dos helicópteros no céu, do lançamento de morteiros e depois das bombas explodindo. Esses sons são seguidos por sirenes e gritos.
Alguns dias os gritos parecem não ter fim. Pacientes demais passam pela entrada. Nunca há leitos suficientes, de modo que os pacientes dividem macas ou ficam deitados no chão. Às vezes não há espaço para dar um passo, com os pacientes deitados em chãos manchados de sangue e com partes de corpos espalhadas. Restam poucos hospitais de campo em Aleppo, de modo que os pacientes que ficam retidos do lado de fora e não conseguem entrar morrem à nossa porta.
Então, abruptamente, termina. Eu me afasto de todos esses pacientes. Passo por ruas com atiradores, sob ataque aéreo e por postos de controle para cruzar a fronteira para a Turquia. De lá, voo de volta para casa.
Isso aperta meu coração toda vez. Um momento, estou em um hospital subterrâneo sacudindo devido às explosões de mísseis, salvando quem podemos, assistindo aqueles que não podemos sangrar até a morte. No momento seguinte, estou no café no aeroporto assistindo um homem de terno alinhado cortando a fila ou uma mulher reclamando com o barista por colocar gelo demais em seu chá.
Menino de 5 anos sobrevive a bombardeio em Aleppo, na Síria
Nada faz sentido, e você se sente como um fantasma. Após ter estado lá, você nunca realmente deixa Aleppo.
De volta a Chicago, são meus pacientes que me ajudam a permanecer focado. Eu tive uma paciente que chamarei de Sarah, que teve um sarcoma na perna quando tinha 8 anos. Ela enfrentou um ano de quimioterapia e teve parte de sua fíbula removida para extirpar o câncer, seguida por radioterapia. O tratamento tolheu o crescimento de sua perna e deformou seu tornozelo, mas ela queria correr e jogar futebol.
Em uma viagem ao Colorado, ela viu pessoas esquiando com próteses e era o que ela queria. Quando completou 11 anos, ela me olhou nos olhos e me pediu para amputar sua perna esquerda. Ela demonstrou muita força. Ela me lembrou de Ahmad, um menino sírio que perdeu ambas as pernas, assim como sua mãe, quando uma bomba destruiu a casa deles. Ele esperava algum dia ter próteses robóticas para que pudesse andar de novo. Sua resiliência foi inspiradora.
Cada vez que volto para Aleppo, entretanto, as condições estão piores. Os bolsões de vida se tornam mais tênues a cada visita. Os mercados, as crianças nas ruas, o movimento do dia a dia, tudo é substituído por escombros: áreas devastadas apocalípticas de prédios eviscerados com tetos desmoronados, vergalhões expostos e escadarias retorcidas.
Mas pessoas ainda vivem em meio às ruínas. Você as vê pendurando roupa para secar em um cômodo no terceiro andar de um prédio cortado ao meio. Vê crianças escalando um monte de escombros de três metros a caminho de casa com um pouco de pão e água. A vida continua e as pessoas encontram formas de lidar. Elas preferem enfrentar a morte em casa do que sofrer em um campo de refugiados ou correr o risco de afogar em um naufrágio.
Para um cirurgião nesse cenário, as decisões de triagem significam a diferença entre a vida e a morte. Uma mãe me implora para que atenda seu filho; o crânio dele está aberto, o cérebro dele exposto. Ele já está morto. Não há nada que possamos fazer.
Passo então para uma menina com uma artéria rompida em sua perna amputada. Ela poderia sangrar até a morte em minutos, mas com pressão e um torniquete, conseguimos lhe dar algum tempo. Ao lado dela está outra menina jovem. A mão dela está em pedaços: tendões rompidos, dedos retorcidos, ossos esmagados. A mãe dela agarra meu ombro, implorando para que leve sua filha primeiro para cirurgia. Mas a menina está viva e pode esperar.
Isso pode durar horas. Eu perco a noção do tempo. Posteriormente, o caos dissipa. Os pisos são limpados. Os mortos são envoltos em panos brancos e colocados na rua, para abrir espaço para a próxima onda de moribundos e feridos.
Você se sente impotente. Não consegue deter aquilo. Não há mãos suficientes para ajudar e não dá para salvar todos. Devemos abrir mão de todo nosso estoque de sangue para salvar uma vida? Ou racioná-lo para salvar cinco que precisam de um pouco? As escolhas são impossíveis, mas precisamos fazê-las.
Os médicos e socorristas sírios em Aleppo sacrificaram tudo, alguns até mesmo suas vidas. Eles comparecem para trabalhar todo dia, apesar de toda horrível brutalidade. Aqueles entre nós que são voluntários não podem impedir as bombas, mas podemos ser solidários com os salvadores de vidas em tempo integral da Síria. Quem eu seria se não pudesse apoiá-los e seguir o exemplo deles por algumas poucas semanas por ano?
Eles estão entre as pessoas mais heroicas, corajosas e abnegadas que já conheci, assim como os bombeiros de Nova York que conheci em 11 de setembro de 2001. Na época um estudante de medicina, eu entrei em uma ambulância com enfermeiros e médicos e seguimos na direção da fumaça e cinzas para ajudar. Vi bombeiros, paramédicos, policiais e cidadãos correndo na direção do World Trade Center. Era daquele lado que eu queria estar.
Nós escrevemos nossos nomes nas costas de nossos uniformes com pincéis atômicos caso nossos corpos precisassem ser identificados. Eu estava apavorado, mas estava cercado por boas pessoas fazendo a coisa certa.
Eu nunca me senti como daquela vez até voltar a Aleppo, em agosto de 2013. Eu já tinha visitado a Síria várias vezes quando era jovem, e conhecia Aleppo, mas aquela era a minha primeira viagem desde o início do conflito. A tristeza esmagadora e o temor que senti no 11 de Setembro, eu sentia todo dia em Aleppo.
Certa noite, nós tratávamos de uma criança pega em uma explosão, que tinha pedaços de ossos de pessoas próximas destroçadas incrustados em sua pele. Um ataque aéreo atingiu sua escola durante um evento de caridade para doação de roupas aos pobres. A última coisa de que ele se lembrava era de ter visto seu melhor amigo se desintegrar diante dele.
O pai do menino me viu e me perguntou quem eu era, e por que eu estava falando em uma língua estranha. Um enfermeiro explicou para ele que eu era um médico americano. Ele me disse que nunca tinha conhecido um americano. Ele achava que nunca conheceria. Ele nunca pensou que algum dia veria um médico americano (mesmo um com sangue sírio, mas nascido e criado com as liberdades e luxos dos Estados Unidos) vir a Aleppo para ajudar em um momento de guerra.
Isso deu ao meu trabalho uma nova dimensão de significado: uma conexão palpável para aliviar o sofrimento de um povo há muito abandonado. Isso permite que saibam que não estão sozinhos. Isso me tornou apenas mais grato por minha vida na América. E também é o motivo que me faz voltar.
*Samer Attar, um cirurgião do Northwestern Medicine e do Lurie Children's Hospital, em Chicago, é voluntário da Sociedade Médica Sírio-Americana e do Conselho Médico da Cidade de Aleppo.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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