Periódico 'News of the Word' era o coração da imprensa marrom

Christopher Hitchens

Christopher Hitchens

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    O jornal britânico do império de Rupert Murdoch foi fechado após denúncias de que seus funcionários faziam escutas telefônicas, entre outras práticas ilegais

    O jornal britânico do império de Rupert Murdoch foi fechado após denúncias de que seus funcionários faziam escutas telefônicas, entre outras práticas ilegais

Em uma bonita manhã de domingo no castelo de Brideshead, lorde Sebastian Flyte interrompe uma vaga conversa sobre religião e moral porque deseja mergulhar nos textos da imprensa marrom. "Voltou às páginas do 'News of the World' e disse: "Mais um chefe de escoteiros indecente ... Oh, não seja aborrecido, Charles, quero ler sobre uma mulher em Hull que estava usando um instrumento ... outros 38 casos foram levados em consideração para condená-la a seis meses - caramba!"

E em seu ensaio "Declinação do Assassinato Inglês", George Orwell sabia exatamente como preparar o cenário para uma prazerosa contemplação da maldade humana: "É uma tarde de domingo, preferivelmente antes da guerra. A esposa está adormecida na poltrona e as crianças foram enviadas a uma alegre e longa caminhada. Você coloca os pés sobre o sofá, acomoda os óculos no nariz e abre seu 'News of the World'. Nessas circunstâncias prazenteiras, o que é que você quer ler?"

A resposta de Orwell - "Naturalmente, sobre um assassinato" - difere significativamente da preferência de Evelyn Waugh por desvios sexuais em "Brideshead Revisited". E talvez você observará que os dois autores, ou seus personagens, estão conscientemente "visitando os bairros baixos" ao optar por um jornal enfocado nos membros menos educados do proletariado. Mas durante décadas, na verdade desde meados da era vitoriana, o "News of the World" foi a fórmula triunfante para a descrição do crime, da pobreza e do vício. O brilhante da fórmula jazia em sua memorável hipocrisia: na verdade, em seus dois tipos diferentes de venerável hipocrisia. Primeiro, as lamentáveis notícias da fragilidade humana não eram reveladas com táticas sensacionalistas. Eram apresentadas mais com tristeza do que com ira, publicadas em um dia sabático que ainda estava cheio de força legal e moral, e que tentava mostrar como era fácil cair da graça. Em segundo, seus repórteres e editores adotavam um tom moral sumamente elevado. Realizavam a investigação de um bordel, por exemplo, só até certo ponto. Uma vez que se havia chegado a um determinado ponto de cumplicidade, aparecia uma frase que chegou a ser célebre tanto impressa quanto nos tribunais: "Nesta etapa", entoava solenemente o repórter, "eu inventei uma desculpa e me retirei". Considerava-se que esse grau de distanciamento fosse essencial para revelar adequadamente o caso.

Deve-se dar crédito a Rupert Murdoch e seus subordinados. Apoderaram-se do velho "News of the Screws" ou "Nudes of the World" e o transformaram em um jornal no qual a pergunta não era quão baixo podia cair a pobre natureza humana, mas sobretudo se há algo, por mais depravado que seja, que não se possa convencer um repórter a fazer. Deve-se admitir que esta não é uma pergunta nova no folclore de Fleet Street. Ao descrever a manada de repórteres com uma missão em sua obra-prima "Furo!", foi Waugh quem observou um de seus vínculos mais estreitos. "Juntos haviam esperado diante de muitas portas e forçado o ingresso em muitos lares mergulhados na desgraça." Como insignificante aprendiz de repórter, lembro que sempre me diziam para não esquecer de levar um companheiro se planejasse uma visita a um lar recentemente violado ou enlutado. "Nesses casos sempre lhe oferecem uma xícara de chá, por isso você pode ir à cozinha com eles, e então seu companheiro terá tempo de sobra para tirar as fotos familiares de cima da lareira."

É claro, o punhado de pessoas visitadas diariamente e submetidas a essas impiedosas intrusões se mostram muito alteradas e distraídas. Mas o efeito oposto ocorre nos muitos milhões de pessoas que não são violadas e que desejam ardentemente saber sobre aquelas que o são. Quando os repórteres falam tão facilmente da grande influência que os jornais de Murdoch exercem sobre os políticos, ao que se referem realmente é aos leitores desses jornais. Sua única e grande graça está em saber o que eles desejam. E o que desejam é a invasão de privacidade - o máximo possível. (No romance de Michael Frayn sobre Fleet Street, "The Tin Men", que é o único que rivaliza com "Furo!", os grupos de enfoque são preparados para responder a perguntas sobre as necessidades da imprensa marrom. No caso de um acidente de aviação, prefeririam ler sobre os brinquedos infantis encontrados entre os restos? Se uma mulher foi atacada, deve ser descrita como que foi encontrada com ou sem roupa íntima? (Sim, caro leitor, você também é um hipócrita.)

A reação comparativa do escândalo entre os dois principais partidos políticos da Grã-Bretanha provavelmente possa ser resumida como mais ou menos igual. Sucessivos governos trabalhistas mantiveram relações muito mais longas e cordiais com Murdoch, enquanto o líder conservador David Cameron chegou a empregar um ex-diretor do "News of the World" - que está envolvido no escândalo das interceptações telefônicas - em um alto cargo na imprensa oficial. (Entretanto, Cameron, à parte a política profissional, não seguiu outra carreira exceto a de relações públicas de algumas empresas de TV.) O aspecto menos comentado de todo esse escândalo é o seguinte: a maioria das acusações de práticas questionáveis contra o jornal de Murdoch provém de outro jornal.

Sob a direção de Alan Rusbridger, "The Guardian" se ocupou de violar uma regra implícita do negócio da imprensa britânica - a que diz que cachorro não come cachorro. O escritório do primeiro-ministro mostrou-se incapaz de realizar uma investigação; os tribunais e os procuradores ao que parece não têm ideia do estado da lei, e a polícia estava ocupada demais cobrando suas cotas como informantes. Deve-se admitir, é claro, que geralmente essas instituições não têm a atribuição de manter a imprensa honesta. (De fato, poderia jurar que todo o conceito é exatamente o oposto.) Mesmo assim, é animador registrar que quando a imprensa precisou de uma boa limpeza houve outro diário disposto a se encarregar dessa tarefa.

Durante o mesmo período, Rusbridger e "The Guardian" formaram o extremo do consórcio de meios de comunicação em Londres que tentou impor algum elemento para selecionar e dar prioridade a toda a confusão em que se transformou o WikiLeaks. Mas aqui havia uma séria revelação - parte dela obtida através de invasão da privacidade - sobre assuntos de verdadeira importância. O que chama a atenção sobre o material do "News of the World" é sua implacável nulidade: quando acontecem coisas cruéis a pessoas sem importância, ou quando coisas sórdidas ocorrem com pessoas famosas. Sensualidade e voyeurismo proporcionam a energia. Uma espécie de Lei de Gresham começa a promover as notícias, ou melhor, a deixar de lado a informação real mediante ondas de fofocas e populismo. Nesse sentido, também é muito o que está em jogo na batalha entre a perspectiva mundial de Murdoch e a do "Guardian".

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Christopher Hitchens

O jornalista e comentarista político Christopher Hitchens, morto em dezembro de 2011, ficou conhecido por suas opiniões polêmicas sobre política e cultura.

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