Milton Friedman não salvou o Chile

Naomi Kein

Naomi Kein

  • Roberto Candia/AP

    Carro vai parar no telhado de uma casa destruída pelo terremoto que atingiu o Chile

    Carro vai parar no telhado de uma casa destruída pelo terremoto que atingiu o Chile

Desde que a falta de regulação causou uma crise econômica mundial em setembro de 2008 e todos se tornaram um keynesianos novamente, não tem sido fácil ser um fã incondicional do economista já falecido Milton Friedman.

Sua concepção do fundamentalismo do mercado livre foi tão amplamente descreditada que seus seguidores estão cada vez mais desesperados para afirmar suas vitórias ideológicas, não importa o quão implausíveis.

Um caso particularmente de mau gosto em questão: apenas dois dias depois que o Chile foi atingido pelo terremoto devastador, Bret Stephens, colunista do Wall Street Journal, informou a seus leitores que o espírito de Milton Friedman “estava certamente pairando sobre o Chile para protegê-lo” porque, “graças em grande parte a ele, o país sobreviveu a uma tragédia que em qualquer outro lugar teria sido um apocalipse. (…) Não foi por acaso que os chilenos viviam em casas de tijolos – e os haitianos em casas de palha – quando o lobo chegou para derrubá-los com seu sopro.”

De acordo com Stephens, as políticas radicais de mercado livre prescritas ao ditador chileno Augusto Pinochet por Milton Friedman e seu infame “Chicago Boys” são o motivo pelo qual o Chile é um país próspero com “uma das normas de construção mais rígidas do mundo”.

Há um problema sério com essa teoria: as modernas normas de construção do Chile, elaboradas para resistir a terremotos, foram adotadas em 1972. A data é importante porque foi um ano antes de Pinochet tomar o poder num golpe sangrento apoiado pelos EUA.

Isso significa que se há uma pessoa que merece o crédito pela lei, não é Friedman, nem Pinochet, mas Salvador Allende, o presidente socialista democraticamente eleito do Chile. (Na verdade muitos chilenos merecem crédito por isso, uma vez que as leis foram uma resposta a vários terremotos, e a primeira lei foi adotada nos anos 30.)

Parece significativo, entretanto, que a lei tenha sido cumprida em meio a um limitante embargo econômico. (“Façam a economia gritar”, rosnou Richard Nixon ao elaborar um plano para evitar que Allende subisse ao poder depois das eleições de 1970). As normas foram atualizadas nos anos 90, bem depois que Pinochet e os Chicago Boys finalmente deixaram o poder e a democracia foi restaurada.

Não é surpresa: como Paul Krugman observou em seu blog do New York Times, Friedman era ambivalente em relação às normas de construção, vendo-as como mais uma limitação à liberdade capitalista. E quanto ao argumento de que as políticas baseadas em Friedman são o motivo pelo qual os chilenos vivem em “casas de tijolos” e não de “palha”, está claro que Stephens não sabe nada sobre o Chile antes do golpe.

Nos anos 60, o Chile tinha os melhores sistemas de saúde e educação do continente, assim como um vibrante setor industrial e uma classe média em rápida expansão. Os chilenos acreditavam em seu Estado, motivo pelo qual elegeram Allende para levar seu projeto mais adiante.

Depois do golpe e da morte de Allende, Pinochet e seus Chicago Boys fizeram tudo o que podiam para desmantelar a esfera pública do Chile, leiloando empresas públicas e cortando fora regulações financeiras e de comércio.

Uma riqueza enorme foi criada nesse período, mas a um custo terrível: no começo dos anos 80, as políticas de Pinochet prescritas por Friedman haviam causado uma rápida desindustrialização, um aumento de dez vezes no desemprego e uma explosão de favelas evidentemente instáveis.

As políticas também levaram a uma crise de corrupção e débito tão severa que, em 1982, Pinochet foi obrigado a demitir seus principais conselheiros dos Chicago Boys e nacionalizar várias das grandes instituições financeiras desreguladas. (Isso soa familiar?)

Felizmente, os Chicago Boys não conseguiram desfazer tudo o que Allende havia construído. A companhia de cobre nacional, Codelco, continuou nas mãos do Estado, injetando riquezas nos cofres públicos e evitando que os Chicago Boys levassem a economia à completa falência.

Eles também nunca conseguiram destruir as rígidas normas de construção de Allende – num ato de negligência ideológica pelo qual devemos ser gratos.

Tradutor: Eloise De Vylder

Naomi Kein

Especialista em assuntos relacionados à globalização, a jornalista e escritora Naomi Klein é autora dos livros "Sem Logo: a Tirania das Marcas em um Planeta Vendido" e "Doutrina do Choque :a Ascensão do Capitalismo de Desastre".

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