A Hora e Vez do médico que avisou o mundo sobre o perigo da mpox
Sete anos atrás, em 22 de setembro de 2017, um garoto de 11 anos chegou à clínica do médico Dimie Ogoina em uma Universidade da Nigéria com um quadro estranho. Ele tinha febre, mal-estar e grandes bolhas e feridas por todo o corpo, inclusive no rosto e dentro da boca e do nariz. Poderia ser um caso grave de catapora, mas o garoto já havia tido a doença. Logo, esse diagnóstico estava descartado.
Ocorreu então a Ogoina, pela localização e tamanho das feridas, que aquilo poderia ser um caso raro de uma doença pouco conhecida: mpox, uma abreviatura do monkeypox, que em português é conhecida como varíola dos macacos. A história foi contada em 2022 em uma reportagem da NPR, a rádio pública dos Estados Unidos.
À época, em 2017, não havia laboratório na Nigéria capaz de confirmar o diagnóstico. O médico mandou amostras do paciente para o Senegal e para os Estados Unidos. Demorou algum tempo até que os resultados voltassem para confirmar a suspeita do médico nigeriano: o garoto tinha mesmo mpox.
Inicialmente, Ogoina achou que aquele era um caso extraordinário por ser o primeiro caso de mpox em humanos da Nigéria em 38 anos. Nos meses seguintes, a clínica do médico na Universidade do Delta do Níger detectou mais 20 casos de mpox.
Ogoina não tinha como saber, mas aquele garoto de 11 anos com feridas pelo corpo era o paciente zero da emergência de saúde pública de preocupação internacional que viria a ser decretada em agosto de 2024, o mais alto nível de alerta da Organização Mundial de Saúde.
Antes do alerta internacional ser dado pelo diretor-geral da OMS, Ogoina foi um dos cientistas consultados pela organização. Ele havia se tornado uma personalidade internacional no ano anterior por causa do seu trabalho pioneiro com os pacientes de mpox na Nigéria. Em 2023, o médico foi escolhido pela revista Time como uma das 100 personalidades mais influentes do ano.
O reconhecimento não aconteceu apenas por ele ter sido o primeiro médico a diagnosticar a ressurgência de mpox. O especialista também descobriu que o vírus que provoca a doença havia se transformado e encontrado novas formas de espalhar entre seres humanos.
Muitas perguntas e poucas respostas
Até então, os surtos eram localizados e, em geral, provocados pelos contatos de humanos com animais silvestres contaminados com o vírus. A primeira suspeita foi que o paciente zero, o garoto nigeriano de 11 anos, havia se contaminado ao brincar com um macaco. Na época, a doença costumava atingir mais crianças do que adultos, e era incomum a sua transmissão entre humanos. Os surtos nunca atingiam mais do que umas poucas pessoas. Mas isso estava mudando.
Logo depois da confirmação do primeiro diagnóstico, os casos começaram a se multiplicar com rapidez em diferentes partes da Nigéria. E, estranhamente, o vírus estava infectando mais homens na faixa etária dos 20 e 30 anos do que crianças. E os pacientes não eram caçadores nem viviam na área rural. Eram homens de classe média que moravam em grandes centros urbanos.
"Por que só homens? Por que só jovens, e não crianças e idosos?", se perguntava Ogoina. Um colega dele descobriu que o paciente zero, o garoto de 11 anos, havia adquirido o vírus dentro de casa, de um parente do sexo masculino.
Os médicos notaram outra mudança de comportamento do vírus. Em vez de provocar lesões apenas no rosto e nas extremidades, as bolhas começaram a provocar grandes feridas nas áreas genitais dos pacientes, segundo Ogoina.
Os médicos passaram então a investigar o comportamento sexual dos pacientes e notaram que vários deles haviam tido vários parceiros antes de desenvolverem a doença. Eles tinham feito outra descoberta: pela primeira vez, o vírus parecia estar se espalhando via contato sexual entre humanos.
Em 2019, Ogoina e seus colegas publicaram um artigo em uma revista científica importante, a PLOS One, e alertavam:
"Embora o papel da transmissão sexual da varíola dos macacos humana não esteja estabelecido, a transmissão sexual é plausível em alguns desses pacientes por meio de contato próximo, pele com pele, durante a relação sexual ou pela transmissão via secreções genitais."
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Quero receberVírus se espalhou pelo mundo
Essa mudança no padrão de transmissão da doença tinha um potencial de aumentar enormemente o risco de aquilo virar uma epidemia. E que seria muito mais difícil de conter os surtos. Seu temor se confirmou.
A partir dos primeiros 200 casos em 2017, o vírus continuou se espalhando entre pessoas dentro da Nigéria, pareceu ter desaparecido, mas se tornou endêmico. Transbordou para outros países africanos e acabou virando um surto internacional em 2022, com dezenas milhares de casos em 78 países de vários continentes, inclusive no Brasil. Foram diagnosticados mais de 10 mil casos de mpox, com 16 mortes.
O surto refluiu em 2023, mas voltou a ganhar força este ano. Nos primeiros sete meses de 2024, o estado de São Paulo, por exemplo, viu os casos de mpox crescerem 257%. São 45 novas notificações por mês em média.
Ao longo dos anos, Ogoina tentou avisar as autoridades que o vírus do mpox havia mudado e que sua transmissão entre humanos, possivelmente pela via sexual, era um risco que precisava ser levado em conta. Mas, segundo ele, seus avisos foram muitas vezes desconsiderados. Ogoina chegou a ouvir que ele não deveria falar mais sobre transmissão sexual da mpox.
Talvez o temor fosse a estigmatização das vítimas da doença, como aconteceu com os primeiros pacientes de Aids quando a epidemia de HIV começou, nos anos 80.
Esse temor, porém, não impediu que a própria OMS considerasse a hipótese da transmissão sexual.
No texto do site da OMS que deu a notícia da decretação do alerta de emergência internacional sobre o mpox, Ogoina é citado. Ele faz o alerta para os riscos da transmissão entre humanos:
"O aumento atual da varíola dos macacos em partes da África, juntamente com a disseminação de uma nova cepa do vírus transmissível sexualmente, é uma emergência, não apenas para a África, mas para o mundo inteiro. A varíola dos macacos, originária da África, foi negligenciada lá e mais tarde causou um surto global em 2022. É hora de agir de forma decisiva para evitar que a história se repita."
Vacina existe, mas não chega para todos
Existe vacina contra o vírus do mpox. Mas sua produção é pequena e mal distribuída. Mais de 300 mil pessoas já foram vacinadas nos Estados Unidos, mas pouquíssimas na África.
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a vacinação contra a Mpox foi iniciada em 2023, com o uso provisório da vacina liberada pela Anvisa. Mas não para todo mundo. O ministério priorizou as pessoas com maior risco de evolução para formas graves da doença. Menos de 30 mil doses foram aplicadas até agora.
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