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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A morte e a morte da norma eleitoral

13.jul.2022 - O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), manobrou para garantir votação da PEC dos auxílios - Elaine Menke/Câmara dos Deputados
13.jul.2022 - O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), manobrou para garantir votação da PEC dos auxílios Imagem: Elaine Menke/Câmara dos Deputados

Volgane Oliveira Carvalho é Secretário Geral Adjunto da ABRADEP, doutorando em Políticas Públicas pela UFPI e Mestre em Direito pela PUCRS

Volgane Oliveira Carvalho é Secretário Geral Adjunto da ABRADEP, doutorando em Políticas Públicas pela UFPI e Mestre em Direito pela PUCRS

19/08/2022 04h00

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Há alguns dias pude conhecer a Casa do Rio Vermelho em Salvador e refletir acerca das enormes contribuições de Jorge Amado e Zélia Gatai para a cultura brasileira ao longo do século XX. Jorge foi um deputado federal cassado por um governo autocrático, Zélia nasceu em uma família de perseguidos políticos pelo mesmo governo ditatorial. Ambos conheciam o valor da democracia e defendiam sua existência de forma enfática.

Dentre o mar de obras e personagens legado por Jorge, nos últimos dias tenho pensado bastante nas metáforas de "A morte e a morte de Quincas Berro d'Água". No livro o protagonista morre, mas em seu velório mantem um sorriso, o que faz com que seus amigos acreditem que ele ainda vive. Diante disso, levam-lhe para uma derradeira noite de diversão e desregramento que acaba com a sua morte definitiva afundando no mar em meio a uma tempestade.

A norma eleitoral está sendo posta à prova em 2022, será ela a nova versão de Quincas Berro d'Água? Não se trata de uma pergunta meramente retórica, ao inverso, ela é bastante pertinente no atual cenário político brasileiro. Explico. A criação de uma emenda constitucional que trouxe um mar de benefícios sociais no meio da eleição, aquela que não conseguimos nominar, representou o assassínio da norma eleitoral, uma afronta aos mecanismos de controle dos pleitos no Brasil, que resguardava nossa democracia dos abusos cometidos por governantes.

Essa enorme cicatriz constitucional criou um estado de emergência de laboratório, gerando de modo artificioso um ambiente formalmente necessário e suficiente para justificar a distribuição à larga de benefícios para os eleitores, especialmente, aqueles menos favorecidos economicamente, com o objetivo de colher cestas e mais cestas de votos em outubro. Essa medida feriu de morte a norma eleitoral.

As tentativas de extirpar o câncer do corpo da Constituição foram tímidas e não se encontrou na farmacopeia jurídica remédio que conseguisse fazê-lo. Diante disso, nossa protagonista sucumbiu à la Quincas, mantendo apenas um tênue e enigmático sorriso. Esse movimento de lábio levou os amigos, os eleitoralistas, a crer que ainda há pulso ali, que a norma ainda vive.

Estando viva, a norma eleitoral foi levada para seu passei definitivo, foi chamada a mergulhar em uma aventura no ambiente das conturbadas eleições de 2022. Nesse passeio, sendo arrastada pelos camaradas noite à dentro, a norma recebe empurrões e rasteiras, mas continua mantendo o sorriso tímido.

Doravante, como discutir a realização de condutas abusivas pelos detentores de mandatos eletivos nas imensidões do Brasil? Será bastante difícil controlar muitas das condutas abusivas, pois o germe, agora, apresenta-se como remédio. O vício se tornou uma regra constitucional.

O estado de emergência criado autorizou a distribuição dos benefícios, mas sendo medida extrema o que mais poderia autorizar? Não causaria espécie se fosse manejado como fundamento para a restrição de direitos fundamentais, especialmente, direitos relacionados à liberdade de pensamento e liberdade de reunião. Da mesma maneira, seria pouco surpreendente seu uso para fundamentar a adoção de medidas de garantia da lei e da ordem e a autorização de ações guiadas pelas Forças Armadas.

É sempre bom lembrar que o Brasil está em estado de emergência até dezembro de 2022, esta condição não permite apenas a criação de medidas eleitoreiras e a morte da norma eleitoral, permite muito mais. Talvez por isso, a norma eleitoral tenha morrido sorrindo, antevendo as consequências não imaginadas pelos criadores da emenda constitucional.

A derradeira viagem da norma eleitoral seguirá pelos próximos dias, essa será uma oportunidade definitiva de nos conscientizarmos de sua condição e buscarmos sua ressurreição. Se essa for apenas uma oportunidade de confraternizar e comemorar a vida, sem que se busque salvar a protagonista, ao final na sua morte definitiva, a norma eleitoral levará consigo para o fundo do mar a democracia brasileira.

Quincas soçobrou sozinho e sorrindo. No nosso caso, a situação é mais drástica, mas muitos de nós os eleitoralistas estamos entorpecidos pela cachaça da ilusão e pela felicidade passageira do poder e não vemos que acorrentada à nossa norma eleitoral está a nossa democracia.