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André Santana

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

BBB: Como Lucas, precisamos de mais gente que queira ser Zumbi dos Palmares

Lucas Penteado (Reprodução: Instagram) - Reprodução / Internet
Lucas Penteado (Reprodução: Instagram) Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

06/02/2021 04h00

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Lucas Penteado tem o perfil das principais vítimas da violência no Brasil.

Homem, negro, de 24 anos, o ator vem contrariando as estatísticas e se desvencilhando dos riscos de sofrer as consequências do racismo que abate, de forma mais cruel, corpos como o dele.

Desde criança esteve envolvido com arte, participou de movimentos estudantis e se destacou em rodas de poesia e slam. Ganhou espaço na mídia, estrelou novela juvenil e foi convidado para o programa de maior audiência da televisão brasileira.

Ao entrar na casa do BBB 21, Lucas se deslumbrou, encontrou outros artistas e outros negros com os quais se identificou, como o ídolo Projota, a quem atribuiu a salvação da depressão.

A letra que tu escreve salva vidas, salvou a minha. Mas eu nunca imaginei que tu ia aparecer aqui. Saca? Tu salvou a minha vida e da minha mãe"

Proposta de quilombo expôs a falsa democracia racial

A empolgação foi grande. Nas primeiras festas, Lucas bebeu além da conta e fez comentários inconvenientes. Ele achava que estava entre os seus mais chegados e se soltou. Chegou a propor uma união entre os participantes pretos do programa.

Uma afronta ao ideal de democracia racial ilusoriamente propagado no Brasil.

A democracia racial é um mito atrelado à ideia de que a cordialidade brasileira possibilitaria harmonia e igualdade de oportunidades e de direitos para brancos e negros. Foi utilizada como resposta aos ideais eugenistas do início do século 20, que previam o extermínio da raça considerada inferior. Mas continua até os dias de hoje como estratégia de apagamento das tensões raciais e das violências sofridas pelas pessoas pretas no país.

A proposta de Lucas foi muito ousada por colocar o dedo em uma ferida encoberta, disfarçada especialmente nos meios de comunicação, que preferencialmente representam os negros como felizes, sorridentes e gratos pelo tratamento piedoso recebido da sociedade.

"A minha revolução é colocar minha cara nesse bagulho e sorrir, e ser feliz", disse Projota, que fez do fã Lucas o tema de piadas que alegram os demais participantes.

Além de se tornar o principal alvo das críticas dos moradores da casa, Lucas recebeu uma reprovação do ídolo Projota, que disse ao jovem que não podia embarcar naquela estratégia já que as pessoas que ele mais amava na vida eram brancas. Como se a história pessoal do rapper, que tem avó, mãe, esposa e filha brancas, diminuísse a segregação racial que os dois artistas conhecem na pele.

Projota sabe muito bem que, fora do convívio familiar, o preconceito age perversamente sobre ele, inclusive cerceando suas oportunidades como artista. Racismo não pode ser resumido a relações pessoais, é uma estrutura de poder e dominação.

"Não quero ser palco para você ser Zumbi dos Palmares"

O enquadramento mais forte e injusto que Lucas recebeu até agora no programa veio justamente após um dos seus discursos mais impactantes:

"Muita gente quando escuta quilombo acha que quilombo é a guerra. Não, quilombo pra gente é a luta pela vida. A guerra era para eles que estavam guerreando contra a revolução", disse o ator.

Parecia que estava declamando trechos do filme Orí (1989), no qual a historiadora Beatriz Nascimento apresenta a relevância da ideia de quilombo para entender as estratégias de resistência da população negra no Brasil.

A fala de Lucas também poderia ter sido retirada dos escritos de Abdias do Nascimento ou de Lélia Gonzalez, intelectuais que elaboraram teses em defesa do quilombismo ou aquilombamento como garantia da vida, no regime escravocrata e no pós-abolição.

Quilombo é a negação da escravidão. É a consciência da dignidade como ser humano e do direito à liberdade. Quilombo é a luta para não ser propriedade, nem coisa, nem motivo de chacota ou humilhação.

No Brasil, o símbolo maior desse conceito é a experiência do Quilombo dos Palmares, chefiado por Zumbi.

BBB 21: Lumena dispara pra Lucas: 'não me faz de otária' - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
BBB 21: Lumena dispara pra Lucas: 'não me faz de otária'
Imagem: Reprodução/Globoplay

Por isso soou tão estranho a repulsa da psicóloga Lumena Aleluia, que se diz forjada na luta do movimento negro, diante da fala de Lucas. "Não quero ser palco para você ser Zumbi dos Palmares", repetiu algumas vezes, com dedo em riste. Lucas não entendeu e se disse perdido.

A fala de Lumena, carregada de rancor contra Lucas, expressa a arrogância de um tipo de ativismo que se quer ser única voz. Também revela uma falta de humildade e de acolhimento aos mais jovens que tentam se apropriar dos discursos de conscientização.

Quem dera tivéssemos mais jovens rompendo barreiras e contrariando estatísticas, buscando palco para serem Zumbi dos Palmares.

Participantes escolhidos a dedo

Observado o protagonismo dos participantes negros nas brigas desta edição do BBB, parece até que a escolha dessas pessoas levou em consideração o desejo de desfazer os discursos da militância negra, enfraquecer as lutas por direito tão evidentes nos últimos anos e retirar a esperança no coletivo.

Parece um projeto de desconstrução das reivindicações e da tentativa de inversão dos lugares de vítimas e algoz. O BBB torna-se, assim, uma extensão da proposta apresentada pela série A Cor do Poder, que não por acaso antecedeu a estreia do reality show. Uma ficção e uma realidade midiatizada para fazerem parecer que o problema está entre as pessoas negras.

BBB 21: Lucas Penteado e Projota se abraçam - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
Imagem: Reprodução/Globoplay

A população negra é diversa, com contradições e desacordos. Como todos os grupos humanos, os negros se desentendem, brigam, armam estratégias e disputam. O BBB tem mostrado isso de forma superlativa.

Mas nenhum barraco ou cancelamento do BBB apagará o fato histórico de como a união do povo negro permitiu a resistência.

Se não houvesse união, a senzala não se transformaria em quilombo. Sem a coletividade, a favela não geraria escolas de samba, blocos afro, terreiros de candomblé, irmandades religiosas e rodas de capoeira. Sem a união dos negros não nasceria o samba. Não seria criado um dos movimentos sociais, artísticos e políticos mais importantes da contemporaneidade: o hip hop, que permite que o Brasil conheça o talento de artistas que hoje brilham na tela e rejeitam a proposta de união.

O programa continua e o Brasil acompanhará até onde a sugestão de Lucas Penteado é utopia.