Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O que a pergunta indigesta de Enzo Celulari diz sobre fome e alienação
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A pergunta feita pelo empreendedor social Enzo Celulari sobre o consumo de carne no Brasil evidencia o abismo que há entre aqueles que podem escolher o que comer e as milhares de pessoas que acordam sem saber como vão matar a fome, com a qual se deitaram para dormir.
É grave que pessoas privilegiadas —com acesso a boa alimentação e a informação— ainda ignorem o drama dos mais de 58 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, que correm o risco de não terem o que comer por falta de dinheiro.
Enzo questionou em uma rede social se a atual queda do consumo de carne seria em decorrência da alta dos preços ou de uma maior consciência dos consumidores.
O fato revela que há ricos no Brasil que, além de não baixarem os vidros blindados de seus carros, não leem jornais. Não é doença, é fome
Denunciar a fome tem sido a prioridade de movimentos sociais, que se arriscam mesmo desprezados pelo atual governo e seus apoiadores em campanhas de difamação.
É também pauta diária de veículos de imprensa, que abordam com histórias reais o que pesquisas de diferentes universidades e institutos conceituados têm diagnosticado.
Há poucos dias, reportagem do El País trouxe relatos de médicos e profissionais de saúde da capital federal sobre pacientes que procuram as unidades se achando doentes, mas que ao serem examinados, descobre-se que 'não é doença, é fome'.
São pessoas com sintomas de tontura e fraqueza que, além da baixa imunidade para enfrentar outras doenças, como a covid-19, sofrem crises de ansiedade e pânico pelo desespero de não poder comer tampouco alimentar seus familiares.
A indignação com a pergunta do empreendedor social se dá pelo desconhecimento de situação que, apesar de agravada pela pandemia e pelo desmonte de políticas públicas de segurança alimentar do governo federal, não é nova.
Em 1947, o poeta pernambucano Manuel Bandeira já escreveu sobre "O Bicho" que viu:
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade
Bandeira revelou espanto pelo fato de o bicho ser um homem.
A esse "bicho" não é dada a possibilidade de escolha "consciente" diante daquilo que come e nem de ser "consumidor" das diversas opções que há nas prateleiras dos supermercados para substituir a proteína de origem animal.
Algumas novidades inclusive simulam desejáveis tipos de carne, como hambúrguer e bacon, para o prazer e alívio da consciência daqueles que podem pagar.
A reposta para Enzo
A resposta para Enzo é que no Brasil real há 14 milhões de desempregados, auxílio governamental de R$ 150 e altas nos preços dos alimentos, em especial da carne bovina, e também do gás para cozinhar a pouca comida que os pobres conseguem levar para casa
Organizações sociais têm feito campanhas para alertar que "tem gente com fome". Por isso é urgente a necessidade de arrecadação de alimentos e "dá de comer".
No Brasil de 2021, devastado pelo desemprego e pela falta de perspectivas, tem gente sendo morta por roubar pedaço de carne em supermercado.
A transformação desta realidade poderia ser mais acelerada com o engajamento daqueles que possuem comida na mesa, poder financeiro e influência midiática.
É absurdo que na crise política, econômica e de valores que o país vive, quando os limites entre a civilização e a barbárie parecem tênues, ainda sejam preservados os privilégios de quem prefira não encarar a realidade.
Há inclusive um pacto de proteção entre os afortunados contra cobranças por posicionamento político e engajamento social. Os cancelados passam a ser os que cobram por apoio daqueles que possuem milhões em reais e seguidores.
O ataque aos que criticam a "isenção" de certas celebridades é desproporcional e injusto diante das desigualdades do país.
É como se o dinheiro e a fama os colocassem em um patamar elevado de onde têm o privilégio de só enxergar o que quiserem e não podem ser criticados por suas escolhas e omissões.
Que todo esse debate feito nas redes sociais ajude Enzo a tomar consciência da sua função como empreendedor social e sua capacidade de ajudar os milhares de Enzos do Brasil, cujos pais puderam oferecer o mesmo nome, mas não a mesma herança em dinheiro e prestígio social.
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