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Lula mostra equívoco sobre discurso racial em entrevista a Mano Brown
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O encontro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com o rapper Mano Brown, no podcast Mano a Mano, deu a oportunidade para o político fazer autocrítica sobre diversos aspectos da sua trajetória e do seu partido.
A entrevista de mais de duas horas mostrou que, para enfrentar os principais debates que serão colocados nas eleições de 2022, Lula precisará ouvir com mais atenção as provocações questionadas por Brown. E atualizar posicionamentos às novas demandas da sociedade, melhor compreendidas pelo líder dos Racionais MC's.
No podcast (disponível em plataformas streaming), o rapper insistiu no questionamento sobre o diálogo com as novas gerações que não conheceram o PT na oposição e, sim, no poder, deixando de ser uma esperança contra as velhas práticas da política para se tornar vidraça, com acertos e erros amplamente expostos.
Para esses novos eleitores, não são suficientes velhas respostas. A dicotomia esquerda e direita, por exemplo, não é tão óbvia quando se adentra em aspectos como a representatividade.
Esse não deveria ser um assunto novo para o dirigente do maior partido do país.
'Os nossos não estavam lá'
Mano Brown retomou as críticas feitas ao PT na campanha eleitoral de 2018, quando o músico participou de uma atividade em apoio ao então candidato à Presidência Fernando Haddad (PT), no centro do Rio.
"Os nossos não estavam lá", disse Brown, referindo-se às classes trabalhadoras e populares das quais o diálogo do PT foi se afastando ao longo dos anos de governo.
Lula até tentou, admitindo que o foco nos mandatos no Executivo e no Legislativo levou os quadros do PT a mudar a relação com a comunidade, mas não conseguiu justificar a ausência de pessoas negras na direção do partido.
"A esquerda é branca, como você lida com isso?", perguntou Mano Brown, citando uma foto recente da cúpula do partido.
A política era branca, a cultura era branca, as profissões mais eloquentes da sociedade, as profissões mais rentáveis eram brancas. A direção do PT tinha uma maioria branca e uma maioria de homens. Há uma evolução política dos negros, tanto homens como mulheres, um grande número de gente está adquirindo consciência de que não basta ficar achando que é vítima. Resolveram ir à luta, resolveram brigar."
Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente
Lula responde como se o racismo se resolvesse apenas na tomada de consciência da população negra e a saída do lugar de "vitimismo".
Esta, inclusive, é a acusação feita contra os movimentos negros por reacionários de direita, como o atual presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo.
A resposta dada por Lula segue também a lógica de empurrar a responsabilidade para o racismo estrutural do Brasil, deixando de lado a papel de cada instituição, especialmente as mais progressistas, na manutenção das desigualdades raciais.
Afinal, não é de hoje que o PT conhece a realidade do racismo no Brasil e já foi confrontado a contribuir no seu enfrentamento, que passa por garantir a presença de negros nos cargos de decisão, além de viabilizar candidaturas negras.
Lélia Gonzalez apontou o racismo nos anos iniciais do PT
Em 1985, a socióloga Lélia Gonzalez (1935 - 1994), uma das principais referências na luta antirracista do país, solicitou o desligamento do PT, partido pelo qual havia concorrido ao cargo de deputada federal em 1982.
Na carta endereçada a Lula, então presidente da legenda, a ativista apontou sua insatisfação com o que chamou de "estreitamento de espaços para uma política voltada para as chamadas minorias".
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em agosto de 1983, cujo trecho está disponível no site Memória Lélia Gonzalez, a militante do movimento de mulheres negras já apontava o "racismo por omissão" na propaganda partidária.
Para não fugir à regra, o PT na TV não deixou por menos: tratou dos mais graves problemas do país exceto um que foi 'esquecido', 'tirado de cena', 'invisibilizado', recalcado. É a isto justamente que se chama de racismo por omissão. E este nada mais é do que um dos aspectos da ideologia do branqueamento que, colonizadamente, nos quer fazer crer que somos um país racialmente branco e culturalmente ocidental, europocêntrico."
Lélia Gonzalez, socióloga
Com PT, combate ao racismo avançou, mas falta muito
Os movimentos negros do país reconhecem a diferença no tratamento do tema do racismo pelos governos do PT, o que possibilitou avanços importantes como as políticas de ações afirmativas, a obrigatoriedade do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira e a titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombo, para citar algumas.
É preciso contudo avançar no enfrentamento ao racismo institucional que ainda coloca as pessoas negras em situação de desvantagem nos postos de trabalho, no acesso a direitos básicos como educação e saúde e as tornam os principais alvos da violência em curso no país.
Para Brown, Lula disse acreditar que o movimento negro tem que participar em igualdade de condições na política do país.
O ex-presidente citou o evento realizado em agosto, em Salvador, quando foi recebido por ativistas, artistas e intelectuais negros na Senzala do Barro Preto, sede do bloco afro Ilê Aiyê.
"Aquela gente é muito melhor formada que eu, tem mais cultura do que eu, pode ser dirigente do PT, ser presidente do PT, pode tudo", disse Lula sobre os participantes.
E por que não são, Lula?
Na oportunidade, Lula ouviu depoimentos sobre a permanência do racismo na sociedade e uma série de propostas elaboradas pelas organizações do movimento negro para superar o problema.
Entre os participantes, estavam pessoas que vêm historicamente construindo e fortalecendo os partidos de esquerda no Brasil, incluindo o PT. Militantes que foram responsáveis pelos avanços, ainda que controlados, das políticas de combate às desigualdades raciais e do debate mais amplo sobre o racismo na sociedade. Mas que sabem as dificuldade que ainda enfrentam para fazer essa discussão dentro das legendas.
Em 2020, pela primeira vez, o PT lançou uma mulher negra como candidata à prefeitura de Salvador, cidade de maioria populacional negra e capital do estado governado pelo partido há quatro mandatos consecutivos.
A candidatura tentou atender à pressão dos movimentos sociais da cidade, que colocaram a questão da representatividade como central nas eleições. Depois de acirradas disputas internas, o PT escolheu uma candidata fora das bases de militância do partido, revelando a falta de prioridade dada aos negros e negras da própria legenda.
São candidaturas negras que não recebem o mesmo apoio institucional, levando inclusive o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) a exigir, por lei, a distribuição dos recursos do fundo partidário e o tempo na propaganda eleitoral gratuita de forma proporcional à quantidade de candidatos negros e brancos —tema da coluna em setembro de 2020.
Nesta passagem por Salvador, Lula ouviu mais de uma vez um pedido que expressa essa demanda por representatividade: a escolha de uma mulher negra ou indígena como vice em sua chapa para as eleições de 2022.
Ao atender a essa reivindicação, o PT, além de demonstrar respeito e valorização das conquistas políticas das mulheres, faria uma reparação histórica com um imenso contingente de apoiadores que, assim com Lélia Gonzalez e Mano Brown, apostaram suas esperanças no partido.
A "evolução política dos negros" exige um avanço dos partidos e seus dirigentes no entendimento da urgência da pauta racial para a política nacional.
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