Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Narrativa de livro infantil recolhido se iguala à dos senhores de escravos
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Acordei nesta segunda-feira (13) com a imagem do meu filho de oito anos, dormindo tranquilo ao meu lado. Não há imagem mais feliz do que a de um filho em paz, saudável e seguro.
Sendo um menino preto como o meu filho, o alívio é de urgência e de prontidão, diante dos riscos que o mundo fora da nossa casa oferece. Por isso, agradeci a dádiva de iniciar a semana com aquela sensação de esperança que o sono do meu filho me trouxe.
A segunda imagem do dia veio do meu celular, contrariando a paz anterior.
A notícia sobre o livro infantil "ABECÊ da Liberdade: A história de Luiz Gama", que relativiza a escravidão, mostrando crianças brincando com as correntes dos navios do tráfico negreiro, me fez chorar ainda ao lado do meu filho dormindo.
Não precisei ler mais do que os trechos sobre a "viagem tranquila", a graça das brincadeiras no navio negreiro, as crianças dançando nos mercados de escravizados, aguardando serem escolhidas para a compra, e de violência física dos corpos marcados em ferro e brasa.
O UOL noticiou a decisão de recolhimento da obra, após denúncias.
Não há nenhuma paz na escravidão
A narrativa do livro é um horror de sadismo e crueldade, tendo como alvo a infância.
Que mente pode fantasiar algum tipo de diversão em um ambiente de dor e violência, onde corpos eram amontoados a todo azar de castigos, humilhações, fome e doenças, restando para muitos o desespero de pular ao desconhecido mar. Ou a lançar seus próprios filhos para que esses não fossem escravizados.
Não consigo ver diferença entre a ação dos senhores de escravos, que cometeram aqueles crimes, e o interesse de remontar essa história em tom de diversão e brincadeira. É o mesmo olhar de desumanização das vidas negras.
O pior é saber que o pano de fundo para essa tragédia literária é a vida de Luiz Gama, um dos maiores defensores da dignidade e dos direitos das pessoas negras neste país.
Ninguém precisa ler essa obra, ainda mais as crianças. Nenhuma subjetividade deve ser construída com a possibilidade de encontrar alguma paz na escravidão.
Racismo é crime
Se o Brasil estivesse realmente preocupado em eliminar a chaga do racismo, além dos editores responsáveis pela publicação (primeiro a editora Objetiva e agora a Companhia das Letras), os únicos que deveriam analisar com atenção o livro seriam aqueles que garantem a justiça e as leis deste país.
Racismo é crime desde a Constituição de 1988 e o Brasil é signatário de tratados internacionais sobre direitos humanos, sobre eliminação da discriminação racial e sobre o combate à escravidão e aos trabalhos análogos.
O que temos atualmente são órgãos públicos, inclusive aqueles criados para defender as populações negras do racismo, sendo chefiados por pessoas que pensam da mesma forma que os escravagistas e os autores deste livro horrendo.
A publicação é de 2015, mas reflete perfeitamente o Brasil de 2021, de discursos de ódios institucionalizados e de naturalizações de violências.
A esperança de outras narrativas
Mas eu não queria escrever esse texto tomado pela tristeza e pela raiva que a notícia da existência deste livro me trouxe logo cedo. A esperança veio das mais diversas reações de indignação a essa narrativa.
Em especial, de mulheres incríveis, que denunciaram a gravidade da obra e enfrentaram com coragem os argumentos enganadores da licença poética, da liberdade de expressão artística ou do embasamento histórico.
Todo meu respeito e gratidão à jornalista Flávia Oliveira, à escritora e também jornalista Eliana Alves Cruz e à gigante escritora Conceição Evaristo, que não se cansam de colocar suas escritas, generosamente, a serviço da justa causa da liberdade e dos humanos direitos das pessoas negras.
Lendo a sensível indignação dessas inspiradoras mulheres, eu me lembrei de tantas educadoras que cotidianamente fazem das suas salas de aulas trincheiras contra o racismo e outros preconceitos. São elas que, contrariando discursos e materiais didáticos oficiais, pesquisam e reúnem outras histórias de resistência, de afetos e de valorização das vidas negras.
São elas as responsáveis por imunizar nossas infâncias de narrativas que ainda tentam justificar opressões e discriminações.
Menor adesão a discursos coloniais
Na busca por esperanças, lembrei também da conversa que tive, no mês passado, com o escritor e jornalista Edson Cardoso, 72, sobre mais uma produção da TV Globo sobre escravidão —a telenovela Nos Tempos do Imperador.
Eu contava para Edson dos absurdos da narrativa da novela, comprometida com o discurso colonial de bondade dos senhores e de romantização da situação dos negros no período anterior à abolição.
Falei da cena em que o personagem negro criticou sua própria comunidade por não aceitar que sua namorada branca morasse no reduto de resistência montado pelos negros. Destaquei a forte reação contrária que provocou uma das autoras da novela a pedir desculpas nas redes sociais e a prometer mudanças na narrativa.
Edson Cardoso atribuiu a rejeição da cena à ação dos movimentos negros em desmontar a narrativa colonial. Aos esforços de militantes que, como ele próprio, denunciam há mais de 40 anos falsas ideias como da abolição como benesse imperial e o mito da democracia racial, exaltando, em contraponto, a experiência dos quilombos e o protagonismo dos negros na luta pela liberdade e cidadania.
Conseguimos diminuir drasticamente a adesão ao discurso colonial
Edson Cardoso, escritor e jornalista
O que li de reação de revolta ao livro "ABECÊ da Liberdade: A história de Luiz Gama", inclusive de pessoas brancas, confirmam a sabedoria do experiente militante.
Nossas crianças não brincarão de escravos. Os corpos dos nossos meninos negros não servirão ao açoite ou à zombaria dos racistas. Nossos filhos dormirão o sono tranquilo.
Nem que para isso, a raiva nos tome novamente e façamos valer a fúria de Palmares e a legítima defesa ensinada a nós por Luiz Gama.
Parem de romantizar a nossa dor. Não há mais lugar para esse tipo de narrativa.
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