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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nego do Borel na Fazenda prova que não há lugar seguro contra o machismo

Após acusação de estupro, Nego do Borel sumiu no Rio - Reprodução/Instagram
Após acusação de estupro, Nego do Borel sumiu no Rio Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

10/10/2021 04h00

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A acusação de estupro em um reality show da TV aberta, o assédio a uma ciclista em via pública, a humilhação de uma vítima em um tribunal e as diversas denúncias contra líderes religiosos no Brasil revelam que não há lugar seguro contra as violências do machismo e da cultura do estupro.

A cada oito minutos, um estupro é registrado no país, segundo a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, relativo a 2019. E não há nenhum sinal de que o cenário tende a mudar.

Dos 66.123 boletins de ocorrência de estupro registrados em delegacias de polícia em 2019, cerca de 85,7% das vítimas são do sexo feminino e, em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima.

Segundo pesquisa do Instituto Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Segundo Pública e divulgada em junho, cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no Brasil, em 2020.

De acordo com o levantamento, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência. Em 48,8% dos casos, o crime foi cometido dentro de casa, tendo como agressores companheiros e ex-namorados.

Nesses casos, a pandemia do coronavírus agravou a situação, pois as vítimas passaram a conviver mais tempo com os agressores, além das perdas de renda e do isolamento das mulheres em relação às redes de proteção.

Nem as câmeras inibem agressor

O machismo, alicerçado por uma rede de conivência e impunidade, provoca a naturalização de práticas abusivas, como forçar um beijo, passar a mão nas partes íntimas, insistir no sexo mesmo após a recusa ou realizar a prática sexual com a mulher em estado de vulnerabilidade ou incapacidade de se defender.

O caso recente, envolvendo o cantor Nego do Borel, mostra como nem mesmo o fato de estar em um ambiente de visibilidade, despertando as atenções de um país, consegue frear o ímpeto do agressor.

A ida de Nego do Borel para o programa "A Fazenda 13", da Record, parecia uma estratégia para melhorar a imagem do artista após uma série de polêmicas e acusações feitas por ex-namoradas.

Ganhou maior destaque o caso envolvendo a atriz Duda Reis, que prestou queixa contra Borel, no início do ano, por estupro de vulnerável, ameaça, lesão corporal e outras violências.

O programa já abrigou outros homens acusados de abusos sexuais, possibilitando para eles trajetórias de sucesso dentro da competição —inclusive com o prêmio principal, conforme mostra essa reportagem do Splash.

Borel, como homem preto, não contou com a mesma proteção de outros participantes e foi expulso do programa, acusado de estupro de vulnerável (novamente), pois teria aproveitado o estado de embriaguez da modelo Dayane Mello.

Nem a emissora que tudo filmava, nem os companheiros de confinamento —ninguém agiu para interromper.

Se, em um programa de TV, com dezenas de câmeras registrando tudo, não conseguem conter a sanha do abusador, imagine nos espaços reservados dos ambientes de trabalho, das famílias e das religiões.

Justiça absolveu de novo acusado de estuprar Mari Ferrer

Somente nesta semana, casos que ganharam espaço na imprensa dão conta de como a cultura do estupro está impregnada nos mais diversos ambientes, contando com a conivência daqueles que poderiam impedir tais violências.

Nesta quinta-feira (7), o Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve a absolvição do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estupro pela influenciadora Mariana Ferrer.

O fato, comprovado por perícia da Polícia Civil, teria ocorrido em 2018, quando a modelo tinha 21 anos e atuava como promoter de uma casa de shows em Florianópolis.

Mari Ferrer foi triplamente vitimada na audiência do caso realizada em setembro de 2020. Além da tese defendida pela promotoria de que o réu não teria como saber que vítima não estava em condições de dar consentimento à relação sexual, portanto não haveria dolo (gerando o tal "estupro culposo"), Mariana teve que ouvir acusações humilhantes por parte do advogado de defesa, sem que o juiz presente interrompesse.

Na sessão, o advogado exibiu fotos das redes sociais da vítima classificando-as como "ginecológicas" e disse que "jamais teria uma filha" do "nível" da jovem, entre outras barbaridades. O Conselho Nacional de Justiça abriu processo para investigar a conduta do juiz da audiência.

É de se pensar o que torna a sociedade inerte para impedir um machista em plena ação.

Ciclo de conivências naturaliza violências

A ideia do patriarcado de domínio sobre o corpo da mulher chega a um grau de perversidade e arrogância que se torna diversão.

Como explicar a violência sofrida pela estudante Andressa Lustoza, quando andava de bicicleta na cidade de Palmas (PR) e foi importunada sexualmente? O agressor, que estava na carona de um carro em movimento, passou a mão no corpo da ciclista. Ela perdeu o controle da bicicleta e caiu, sofrendo arranhões e hematomas pelo corpo. O motorista, cúmplice da violência, não parou para socorrê-la.

Causam horror os relatos contidos no livro "João de Deus - O Abuso da Fé", da jornalista Cristina Fibe, sobre os abusos cometidos pelo médium João Teixeira de Faria, na cidade de Abadiânia (Goiás), onde ele realizava atendimentos espirituais.

Se os detalhes dos crimes sexuais, cometidos por mais de quatro décadas, que levaram à prisão do ex-líder espiritual em 2018, já são aterrorizantes, o que dizer do fato de a cidade ter conhecimento dos abusos e conviver com os riscos que cada mulher corria ao chegar ao local em busca de cura.

A autora entrevistou um morador de Abadiânia que relatou as apostas sobre os crimes sexuais que eram feitas entre os homens quando chegava um ônibus de fiéis ao encontro de João de Deus.

A gente via as mulheres que desciam e apontava: aquela lá vai ser chamada para conversar com o médium João, aquela também?.A gente apostava para ver quem acertava mais."
Morador de Abadiânia em trecho do livro de Cristina Fibe

Infelizmente, João de Deus não é o único líder religioso a responder por abusos sexuais de fiéis. O que torna um triste ponto em comum entre religiões diferentes, cujos seus líderes se aproveitam da fragilidade das vítimas e da confiança depositada por quem busca proteção na fé.

É um ciclo de conivências terríveis: as pessoas por perto não denunciam, o Estado não acolhe a vítima, a Justiça não condena, a mídia espetaculariza a agressão e a sociedade perdoa o machista, justificando e naturalizando os abusos.