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Globo celebra 70 anos de novelas sem valorizar talentos de artistas negros
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A Rede Globo leva ao ar hoje (21) um especial para comemorar os 70 anos da primeira telenovela exibida no Brasil: "Sua Vida me Pertence", da TV Tupi.
A julgar pelas chamadas da celebração, Thais Araújo é a única atriz negra a participar do programa que conta os marcos dessas sete décadas do produto mais popular da televisão brasileira.
Muito justa a participação da atriz que há mais de 25 anos empresta seu talento para dar vida a personagens emblemáticas como Xica da Silva (1996), da extinta TV Manchete, além de Preta, de Da Cor do Pecado (2004), e Helena, de Viver a Vida (2009), em duas raras oportunidades que a TV Globo deu protagonismo a uma artista negra em suas telenovelas.
Neste momento, quando a emissora chega ao extremo de exibir sete produções diariamente, entre reprises e inéditas, em nenhuma delas há negros como protagonistas.
Mesmo na escravidão, o protagonismo branco
Nem mesmo na trama ambientada no período da escravidão, Nos Tempo do Imperador, os personagens interpretados por artistas negros são os principais. O foco central da novela é o conflito amoroso entre o imperador, a esposa e a amante e os embates do monarca com seu adversário, o vilão Tonico Rocha.
Mesmo assim, o bom desempenho dos intérpretes tem garantido destaque para personagens como Samuel (Michel Gomes), Lupita (Roberta Rodrigues), Zayla (Heslaine Vieira), Guebo (Maicon Rodrigues) e o casal Cândida (Dani Ornellas) e Dom Olu (Rogério Brito).
Esse elenco prova que quando recebem bons papéis, o talento negro se revela. É o caso da premiada atriz Léa Garcia que tornou Rosa, de Escrava Isaura, uma das mais notáveis vilãs da teledramaturgia brasileira. Contudo, o talento comprovado na interpretação que fez o público odiar a personagem não garantiu à atriz outros papéis relevantes e à altura da sua competência.
Uma lista de artistas negros com essa participação relevante em uma história contada pela Rede Globo é mesmo raro. Nem o contexto histórico garante que a hegemonia de artistas brancos seja rompida ou mesmo flexibilizada.
Sobre a temática recorrente da escravidão, por exemplo, a Globo conseguiu produzir um dos maiores sucessos da sua história: Escrava Isaura, adaptação feita por Gilberto Braga do romance de Bernardo Guimarães, que conta a história de uma escrava branca.
A trama já ganhou novas versões na própria Globo e também na Record. A escolha por uma personagem não negra para vivenciar os sofrimentos causados pela escravidão a milhares de pessoas pretas, mais do que uma liberdade criativa, revela essa posição excludente tomada pela emissora ao longo da história da telenovela.
White Face
Mesmo em situações em que as narrativas parecem ser extraídas de experiências negras, as personagens recebem o que se pode chamar de white face, ou seja, são representadas por artistas brancos.
É o caso da biografia da musicista mestiça Chiquinha Gonzaga, interpretada por Regina Duarte; do time de futebol do subúrbio carioca de Avenida Brasil; das empregadas domésticas de Cheia de Charme e da quase totalidade do elenco de Segundo Sol, que se passava em Salvador, capital da Bahia, entre marisqueiras, capoeiristas e artistas do Carnaval.
O contrário jamais aconteceria. Imagine se a personagem Aracy de Carvalho, de Passaporte para a Liberdade, ambientada na Alemanha nazista, em vez de Sophie Charlotte fosse interpretada por Jessica Ellen.
Talento as duas atrizes têm de sobra para viver essa e outras personagens complexas. Mas há, inegavelmente, na televisão brasileira o privilégio a uma única estética, representada por artistas de pele branca e traços eurocêntricos.
É o que comprova a relevadora obra de Joel Zito Araújo, A Negação do Brasil, um verdadeiro inventário do racismo nas telenovelas brasileiras, pesquisa de fôlego já citada por esta coluna.
Depois de Thais Araújo, qual outra atriz negra foi protagonista em novelas da Rede Globo?
Nas tramas que estão no ar neste momento (repito, são sete produções), é possível observar que essa exclusão se repete mesmo na variedade de temas, épocas e linguagens.
Se nas obras que tentam inovar o gênero telenovela, como as mais recentes Verdades Secretas e Um Lugar ao Sol, as pessoas negras continuam ausentes ou sub representadas, torna-se difícil comemorar esses 70 anos com um mínimo de esperança.
A celebração deveria servir para a emissora, por meio de seus autores e diretores, refletir sobre os talentos desperdiçados, as histórias distorcidas e mal contadas e a diversidade negada por conta de escolhas racistas e excludentes.
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