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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Enquanto foliões curtem Carnaval, jovens são mortos na Gamboa em Salvador

Moradores da Gamboa, em Salvador, fazem protesto contra assassinato de três jovens da comunidade - Felipe Iruatã
Moradores da Gamboa, em Salvador, fazem protesto contra assassinato de três jovens da comunidade Imagem: Felipe Iruatã

Colunista do UOL

06/03/2022 04h00

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O último dia de Carnaval 2022, em Salvador, 1º, foi marcado por protestos em uma importante avenida pela morte de três jovens negros em mais uma ação violenta da Polícia Militar, em uma comunidade da cidade.

Na mesma região das manifestações, uma das mais concorridas festas privadas abria seus portões para a última noite de festejos carnavalescos.

O pátio do Museu de Arte Moderna da Bahia foi o cenário escolhido por uma das festas fechadas que movimentaram o Carnaval de Salvador este ano, após o cancelamento dos desfiles dos trios e atrações nas ruas da capital baiana, por conta da pandemia.

Localizado na Avenida Contorno, que margeia a cidade à beira do mar da Baía de Todos os Santos, o espaço reuniu artistas e foliões em seis dias de festa.

A bela praia do Solar do Unhão e as expressões artísticas e gastronômicas da comunidade pesqueira da Gamboa de Baixo têm atraído visitantes e iniciativas culturais. O local já foi utilizado para produções audiovisuais, como um clipe da cantora Anitta (da música Bola, Rebola), a série documental Street Food (Comida de Rua) da Netflix e a telenovela Segundo Sol, da Rede Globo.

Ali pertinho de onde aconteceu o baile privado, enquanto uma multidão se despedia da folia ao som de sucessos do axé music e novidades da música pop, famílias choravam a perda causada pelo assassinato de três jovens da Gamboa de Baixo, na madrugada do dia 1º.

Diante das execuções, os moradores da comunidade demonstraram coragem ao exigir justiça, confrontando a versão apresentada pelos policiais e costumeiramente aceita pela imprensa.

Segundo a Polícia Militar, os agentes foram recebidos por disparos ao chegarem ao local, para verificarem uma denuncia de que homens estavam armados.

Moradores acusam policiais pelas execuções

Durante os protestos pela morte de Patrick Sapucaia de 16 anos, Alexandre Santos de 20 anos e Cleberson Guimarães de 22 anos, as mulheres da comunidade enfrentaram a repressão policial e interromperam a tentativa de mais uma cobertura midiática centrada na versão dada pelas autoridades policiais.

Além de receberem os policiais com gritos de "assassinos", as moradoras fizeram de tudo para impedir que prevalecesse a justificativa de "troca de tiro" e de "resistência armada" quase sempre dada nas operações que resultam em mortes.

Os moradores da comunidade, que testemunharam a ação, acusam os policiais de chegarem ao local lançando bomba de gás e atirando, atingindo os três jovens, que não apresentaram nenhum resistência.

Os vizinhos e familiares das vítimas negam que tenha havido troca de tiros, como alega a Polícia Militar, e denunciam que os corpos das vítimas foram removidos e o local das execuções alterado, atrapalhando a apuração dos fatos.

Em depoimento ao UOL, a mãe de um dos jovens afirma que teve uma arma apontada para a cabeça pelos policiais, enquanto seu filho, ainda vivo, clamava por socorro.

"Não tive mais o que fazer"

Leia reportagem: Três jovens negros são mortos em ação policial na BA; moradores acusam PMs

Órgãos pedem providências. Imprensa também foi confrontada

O Ministério Público Estadual da Bahia instaurou um procedimento de notícia para acompanhar as investigações sobre a ação policial na Gamboa. Já a Secretaria da Segurança Pública determinou à Corregedoria Geral da PM a apuração da ocorrência.

Organizações de Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados do Brasil seção Bahia têm cobrado a urgência na instalação de câmeras em viaturas e fardas da PM-BA, medida que vem garantindo mais transparência às ações policiais e reduzido a letalidade em outras cidades, a exemplo de São Paulo.

A união dos moradores da Gamboa tem feito Salvador mudar o olhar para a comunidade que antes era estigmatizada, como as demais periferias, e atualmente é uma opção de lazer e turismo da cidade. Grupos culturais e empreendimentos comerciais demonstram o potencial comunitário existente na Gamboa. Essa nova percepção precisa alcançar os agentes da segurança pública.

Comunidade reage à presencia dos agentes - Romildo de Jesus/Futura Press/Estadão Conteúdo - Romildo de Jesus/Futura Press/Estadão Conteúdo
Imagem: Romildo de Jesus/Futura Press/Estadão Conteúdo

Um documento assinado por dezenas de organizações sociais e comunitárias que repudiam a violência policial aponta ainda que a ação da madrugada do dia 1º não se baseia em qualquer mandado de busca e apreensão, como determina a lei.

Por entender que toda pessoa tem direito à vida, ao devido processo legal e a um julgamento imparcial, sendo inadmissíveis execuções arbitrárias, uma moradora rebateu um jornalista da tevê local que questionou o envolvimento dos jovens com a criminalidade.

"Oh, moço! Não importa isso agora no momento, sabe por quê? Porque se eles [policiais] pegaram [o jovem] em algum erro, a obrigação dos policiais é levar preso, não a matar à queima-roupa. Eles atiraram à queima-roupa", disse ao vivo a cidadã, para surpresa de uma imprensa treinada a contextualizar as mortes com a ficha policial dos assassinados.

A passagem pela polícia, sempre destacada em matérias jornalísticas do gênero, funciona como argumento para as execuções, como se no Brasil houvesse pena de morte para qualquer crime cometido.

A aceitação da única versão oferecida pela polícia e a criminalização prévia dos moradores da periferia, por serem pobres e pretos, contribuem para as altas taxas de homicídios em operações policiais.

Os dados do monitoramento da Rede de Observatórios da Segurança, realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, colocam a Polícia Militar da Bahia como a mais letal da região Nordeste e uma das mais violentas do país, tendo como alvos principais pessoas negras, como Patrick, Alexandre e Cleberson.

De acordo com a pesquisa "Pele Alvo: A cor da violência policial", da Rede de Observatórios da Segurança, a Bahia possui algumas das cidades com maior letalidade policial de pessoas negras do país. É o caso de Salvador e Santo Antônio de Jesus, campeã no ranking nacional.

Ainda segundo a pesquisa, em 2020, 100%, ou seja, todas as pessoas mortas em operações policiais na capital baiana eram negras.

Os números desta tragédia crescem a cada ano - entre 2019 e 2020, houve um aumento de 21,08% de mortes por ações policiais -, sem nenhum perspectiva de mudança por parte do governo e das autoridades da segurança pública.

O governador Rui Costa chega ao final do segundo mandato - a quarta gestão petista consecutiva no governo da Bahia - , sem demonstrar qualquer constrangimento com esses números. Há muito tempo, o chefe do executivo estadual nem se dá ao trabalho de comentar essas mortes.

Quando fez, ou elogiou a atuação policial ou considerou as ocorrências como "casos isolados".

A indignação cresce entre os moradores que, corajosamente, lutam por justiça. Para que essas exigências ganhem maior alcance é preciso contar com o potencial de visibilidade da imprensa e daqueles que desejam gozar das belezas naturais e culturais dessas comunidades para suas produções artísticas, para lazer e diversão.

Além dos belos cenários, a Gamboa possui vidas de cidadãos de direitos que precisam ser respeitadas. As vidas da Gamboa importam.

Abaixo registro da festa privada de Carnaval que ocorreu nas proximidades da Gamboa de Baixo: animação para os visitantes, lágrimas e luto para a comunidade.