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André Santana

REPORTAGEM

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Por que escultura de Iemanjá negra causa incômodo na festa do 2/fev

Escultura da Iemanjá negra, do artista plástico Rodrigo Siqueira, no altar da colônia de pescadores do Rio Vermelho - Cristian Carvalho / Divulgação
Escultura da Iemanjá negra, do artista plástico Rodrigo Siqueira, no altar da colônia de pescadores do Rio Vermelho Imagem: Cristian Carvalho / Divulgação

Colunista do UOL Notícias

02/02/2023 06h02Atualizada em 02/02/2023 08h31

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Ainda não foi dessa vez que a imagem de Iemanjá com pele negra e traços africanos reinará absoluta na casa dos pescadores do bairro do Rio Vermelho, em Salvador, onde acontecem as principais homenagens à Rainha do Mar, neste dia 02 de fevereiro.

A divindade, que reina sobre as águas salgadas, é cultuada em regiões litorâneas, em países como Cuba e Nigéria e, no Brasil, se popularizou através de religiosos do Candomblé e da Umbanda e pela associação com símbolos da cultura indígena e europeia.

Uma das mais fortes tradições ligadas à Dona Janaína, como também é chamada Iemanjá, é a festa de largo que todos os anos atrai milhares de visitantes para a praia do Rio Vermelho, unindo rituais religiosos a rodas de samba e batuques para agradecer e celebrar a proteção que vem das águas do mar.

Para os devotos, especialmente aqueles que vivem da pesca e tiram o sustento do mar, é dia de agradar à vaidosa Orixá, com flores, perfumes e enfeites, garantindo o livramento de problemas ou o socorro em forma de fartura de peixes.

Mesmo sendo uma das poucas, talvez a única, celebração popular para uma entidade religiosa de matriz africana, a Festa de Iemanjá no Rio Vermelho tem como ícone mais representativo a imagem de uma mulher branca, reproduzida em roupas, quadros, cartazes e esculturas cultuadas no espaço sagrada dedicado pelos pescadores.

Este ano, uma tentativa de alterar essa representação simbólica, orientada pela busca da valorização da cultura negra, esbarra na persistência do racismo.

Centenário celebra retorno da festa popular após pandemia

Completando 100 anos de devoção à protetora dos navegantes, a colônia de pescadores recebeu de presente uma escultura de metal e fibra de vidro, que representa a Orixá mais festejada do Brasil em suas origens mais remotas, com uma cauda de sereia e um belo busto de mulher negra, adornada de conchas e búzios.

Quem visitar o pequeno imóvel à beira mar para levar preces ou oferecer presentes à Mãe das Águas encontrará a Iemanjá negra dividindo espaço com dezenas de esculturas que retratam a entidade na forma mais popular, com o vestido azul e os longos cabelos, mais parecida à imagem de santas cristãs.

Festa de Iemanjá ganha 1º imagem negra do orixá - Cristian Carvalho/Divulgação - Cristian Carvalho/Divulgação
Comunidade que iniciou Festa de Iemanjá ganha 1º imagem negra do orixá
Imagem: Cristian Carvalho/Divulgação

"Causa incômodo porque ainda há muita resistência a reconhecer Iemanjá como uma entidade africana. Houve todo um processo histórico de embranquecimento e de apagamento da nossa história. O resultado é que nesse espaço, que é a Casa de Iemanjá do Rio Vermelho, até então só tinha imagens com traços europeus, de pele clara e cabelos lisos", aponta Vilson Caetano, pós-doutor em Antropologia e autor de livros sobre a religiosidade afro-brasileira.

Vilson Caetano é professor da Universidade Federal da Bahia e babalorixá (pai de santo) do terreiro Ilê Obá L'okê, em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador.

Em entrevista à coluna, o pesquisador explica a polêmica em torna da imagem de Iemanjá negra que, para atender às críticas dos incomodados, não pôde ficar no altar central, já destinado à Iemanjá branca.

"O embraquecimento da imagem de Iemanjá faz parte do processo perverso de negação da presença da população negra, de origem africana, na sociedade brasileira. A partir do século XIX, o termo preto foi sumindo dos livros de batismo e os deuses africanos foram sendo associados a santos. Colocar máscaras brancas em deuses negros é a negação da nossa identidade e da nossa condição de país mais negro fora do continente africano", destaca Vilson Caetano.

Iemanjá é a Mãe das Águas e das Cabeças

O pesquisador conta que, para aproximar mais da tradição cristã, a representação de Iemanjá foi perdendo características negras, sendo ressaltados aspectos mais ligados à maternidade, em uma alusão à Maria, mãe de Jesus.

"Mas Iemanjá não é virgem, como Nossa Senhora. Ela é guerreira, parideira, além de ser responsável, junto com Oxalá, pela criação dos seres humanos".

Ele explica que, na cosmologia africana, Iemanjá é o par mítico de Oxalá.

"Eles representam os elementos vitais, o ar e a água. Enquanto Oxalá é o oleiro que moldou nossos corpos, Iemanjá cuidou das cabeças, dos nossos Oris, que guiam os destinos individuais e as possibilidades que cada um tem em sua trajetória pessoal".

Essa condição de guia e orientadora dos caminhos pode ter levado à associação de Iemanjá com Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora dos Navegantes, ambas celebradas neste dia 02 de fevereiro.

Terreiro-museu oferece imagens 'enegrecidas'

O pesquisador e babalorixá Vilson Caetano no Ilê Obá L'okê - Acervo Ilê Obá L'okê - Acervo Ilê Obá L'okê
O pesquisador e babalorixá Vilson Caetano no Ilê Obá L'okê
Imagem: Acervo Ilê Obá L'okê

Considerado um terreiro-museu, o Ilê Obá L'okê (Casa do Rei e Senhor das Alturas), dedicado a Oxaguiã, reúne um dos maiores acervos de arte sacra afro-brasileira, formado por esculturas, painéis, objetos, mobiliário, fontes, indumentárias, instrumentos musicais e utensílios de cozinha ritual.

É possível realizar uma visita virtual: https://ileobaloke.com.br/

Na contramão do embranquecimento das divindades negras ainda presente em muitos templos religiosos de matriz africana, o Ilê Obá L'okê possui um rico acervo de esculturas religiosas 'enegrecidas', desde a fachada às áreas internas e ritualísticas, fruto do trabalho do artista plástico Rodrigo Siqueira.

Foi Siqueira que criou a imagem de Iemanjá negra para a colônia dos pescadores, em uma iniciativa em parceria com o Muncab (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira), promovendo uma reparação histórica na festa popular dedicada à Orixá.

O artista plástico Rodrigo Siqueira trabalha no enegrecimento das imagens sacras - Cristian Carvalho/Divulgação - Cristian Carvalho/Divulgação
O artista plástico Rodrigo Siqueira trabalha no enegrecimento das imagens sacras
Imagem: Cristian Carvalho/Divulgação

"Essa é uma reivindicação dos movimentos sociais, em especial do movimento negro pela valorização da nossa estética. Negar que Iemanjá é negra faz parte das armadilhas do racismo, que criou estereótipos e mentiras sobre nossa história e produziu silenciamentos sobre nossas imagens", explica Caetano.

"Onde é o nosso lugar nesta sociedade?", questiona Vilson Caetano.

Para o líder religioso, o constrangimento com a presença da escultura de Iemanjá negra é o mesmo vivenciado por pessoas pretas em diversos ambientes sociais nos quais a presença negra não é bem-vinda.

"Ainda estão decidindo onde nós podemos estar".

Que a mesma força das águas que permitiu exemplos de resistência na diáspora africana continue possibilitando transformações como esta, para que possamos desfrutar de espaços de igualdade, especialmente quando relacionadas à fé.