Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Até Ivete cedeu ao apelo machista das músicas de Carnaval
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O Carnaval 2023 começou oficialmente nesta quinta-feira, 16, mas as mulheres que curtem a festa já somam uma série de reclamações de assédios e abordagens abusivas que sofrem nas avenidas da folia.
Em um país dominado pelo machismo, músicas como Crias da Ivete, hit da cantora Ivete Sangalo para essa Carnaval, reforçam o imaginário de hiper-sexualização das mulheres, justamente quando aumentam as violações ao corpo feminino.
Em Salvador, houve a denúncia de estupro de uma mulher de 30 anos, em um banheiro químico instalado no circuito Barra-Ondina. A ocorrência foi registrada na 14ª delegacia, nesta quarta-feira, 15, durante uma das festas pré-carnavalescas da capital baiana. Pelo tipo de crime, poucas informações foram disponibilizadas sobre as investigações.
Diversas organizações de mulheres têm mobilizado órgãos públicos e entidades carnavalescas a integrarem a luta em defesa do direito das mulheres de curtirem livremente o Carnaval, sem assédio. A campanha "Não é Não" alerta para o crime, que pode levar à prisão, e é identificado por constrangimentos com cantadas obscenas, puxões de cabelo, beijos forçados, entre outros abusos.
Mas, se depender das músicas que animam o Carnaval 2023 em Salvador e reverberam para a folia de todo o país, o corpo feminino continuará sendo tratado como um objeto dos desejos machistas ligados à dominação e à violência.
Até a cantora Ivete Sangalo, que sempre traz para a folia músicas que exaltam a alegria e celebram a emoção carnavalesca, este ano aderiu à repetitiva onda de canções que misturam o apelo ao consumo de bebidas alcoólicas e a sexualização dos corpos femininos.
À primeira vista, a música Crias da Ivete parece falar de mulheres empoderadas, "gostosas, experientes e perigosas", que viram tequila de uma vez. Mas o que fica de mensagem mais batida no refrão é de que "Tem gente que senta pra beber, aqui nos bebe pra sentar".
É estranho ver Ivete embarcando neste apelo desnecessário diante do sucesso que conquistou graças ao talento e ao incrível carisma em dialogar com diferentes plateias. Ivete não precisa desse tipo de apelação. Logo ela que tem um público infantil e de jovens, que merecem ouvir outras mensagens de incentivo.
A letra do pagodão não combina com a artista que, aos domingos, entra nas casas das famílias brasileiras para brincar de acertar a identidade de cantores escondidos em fantasias lúdicas.
Não se trata de mero moralismo ou de esquecer o clima descontraído que reina quando as cidades são entregues ao comando da euforia momesca. Estamos falando da responsabilidade de artistas diante de um país de demasiada violência contra meninas e mulheres.
O Brasil registra um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Houve um aumento considerável desse tipo de crime durante a pandemia de Covid 19. Ainda de acordo com o Fórum, mais de 100 mil meninas e mulheres sofreram violência sexual entre março de 2020 e dezembro de 2021, período mais crítico da pandemia.
A crise sanitária que impediu a realização do Carnaval de Salvador por dois anos aumentou o clima de insegurança das mulheres, muitas delas confinadas no ambiente do lar com os principais agressores.
Nas ruas, a mesma animação que estimula as mulheres a se liberarem das opressões que sofrem no cotidiano é a mesma que encoraja os homens a repetirem práticas machistas, que entendem os corpos femininos como propriedades deles.
Entre as dez canções mais populares que disputam o título de Melhor Música do Carnaval 2023, Ivete é a única voz feminina a defender um dos hits, justamente Crias da Ivete.
No mais, são homens empunhando, com raras exceções, versos que descrevem como os corpos das mulheres, "novinhas ou maduras", podem oferecer prazeres e garantir a realização dos seus desejos sexuais.
A música Zona de Perigo, aposta de Léo Santana para a folia deste ano, chegou a ser a mais tocada no Brasil e uma das 25 mais tocadas no mundo, nas plataformas de streaming. Compartilhada intensamente por famosos e anônimos nas redes sociais, com uma coreografia sensual, a composição detalha como a desejada, "vem sentando gostosinho pro pai. E vem jogando de ladinho, neném. Vem deslizando (vai). Que eu tô gostando (vem)".
Outras canções são ainda mais explícitas como o pagodão de Deivison Nascimento, conhecido como Oh Polêmico, que tem como título "Deixa eu botar meu boneco". Ou a Carol, da música de Filipe Escandurras, autor de dezenas de sucessos, que esse ano resolveu homenagear aquela que "de todas as mulheres, sua sentada é a melhor".
Carnaval é diversão, bom humor, alegria. Combina muito com namoro, paquera, beijo. Mas desde que seja tudo consentido e, principalmente, que as decisões sejam conscientes e não motivadas pelo elevado nível alcoólico, como sugerem certas canções.
Que os foliões saibam fazer a separação entre os apelos das letras das canções e a realidade de respeito que todas as mulheres merecem, inclusive, e principalmente, as que cantam e dançam ao ritmo dessas músicas.
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