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Lula culpa games por violência nas escolas e é criticado por especialistas
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Em declaração feita essa semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em uma análise rasa e apressada, imputou aos games a responsabilidade pela onda de ameaças de ataques às escolas brasileiras e afirmou que não existem jogos voltados para a educação.
"Não tem game falando de amor. Não tem game falando de educação. É game ensinando a molecada a matar", disse o presidente Lula durante reunião realizada dia 18/04, entre os três poderes, no Palácio do Planalto, para discutir o tema.
A declaração foi criticada inclusive pelo filho de Lula, Luís Cláudio, que apontou a generalização da fala do presidente e lembrou que o pai viu os filhos e os netos crescerem jogando videogame, e que isso não os tornou violentos.
"Vídeo game é muito mais que violência, é arte, é lazer, é entretenimento", escreveu no twitter Luís Cláudio Lula da Silva.
Nesta quinta-feira, 20, especialistas do setor de jogos, que se sentiram ofendidos pela análise do presidente, se mobilizaram e publicaram como resposta uma carta aberta à comunidade brasileira.
No documento, destacam inclusive que agências de fomento estaduais e federais têm investido em projetos de jogos digitais voltados para a educação, com a obtenção de resultados positivos, e que as pesquisas comprovam o potencial desses jogos como mediadores de ensino e aprendizagem.
"Uma longa trajetória de pesquisa na área demonstra que a associação simplória entre games e violência é não apenas equivocada, mas possui o potencial de distorcer uma discussão séria sobre as raízes da violência", destaca carta assinada por pesquisadores, professores e desenvolvedores da área de games de diferentes instituições de ensino do país.
O manifesto assinado por coordenadores e professores de cursos de games, desenvolvedores e pesquisadores transdisciplinares de jogos digitais do país, desconstrói o senso comum que associa os jogos digitais a comportamentos agressivos.
Espera-se, por parte do presidente, um pouco mais de cuidado diante de tamanha problemática que deixou estudantes, familiares, professores e gestores de escolas assustados.
Na declaração contra os jogos digitais, o presidente da república banalizou os esforços dos pesquisadores desse campo de atuação no desenvolvimento de jogos para as práticas de aprendizagem. A produção brasileira, neste setor, além das contribuições para a Educação, tem possibilitado o crescimento da representatividade de grupos nas narrativas dos videogames.
Apenas no Brasil, a trajetória de pesquisa em games no setor de educação já completa duas décadas. Esse histórico, por si só, já desmistifica o argumento do presidente que não existem jogos que educam, como destacou para a coluna a coordenadora da Rede de Pesquisa Comunidades Virtuais e pesquisadora em jogos eletrônicos e aprendizagem, Lynn Alves, da Universidade Federal da Bahia.
"Ao longos desses 20 anos, muitas pesquisas foram desenvolvidas e financiadas por agências de fomento, tanto em nível de mestrado e doutorado, quanto em nível de desenvolvimento de jogos. Nós temos um caminho construído que não se baseia no senso comum, e sim dentro da ciência, do cenário da universidade, a partir de uma investigação qualificada e embasada em aporte teóricos metodológicos e pesquisa de campo para desenvolver games educacionais", diz a pesquisadora.
O contexto que Lynn Alves traz em suas falas também é exposto na carta dos pesquisadores que evidenciam as diversas possibilidades da aplicação de jogos na educação.
"Assim como na Educação, História, Geografia, Filosofia, Exatas e áreas biológicas, há diversas outras aplicações para os jogos, como aqueles voltados a várias áreas da Saúde. Jogos digitais podem ser utilizados como recursos valiosos em tratamentos psicológicos, fisioterapêuticos, como meios de promoção da saúde bucal e nutricional, bem como, em áreas de promoção da cultura popular, promoção dos povos originários, dentre outras possibilidades", completa o documento.
Outra questão problemática é a acusação dos games como impulsionadores da violência, uma leitura reducionista, isso em causa e feito. Sobretudo, porque não considera a complexidade dos atos violentos, que exigem uma análise cuidadosa de fatores distintos, como a falta de atenção familiar, a precarização das rotinas escolares, desigualdades sociais e econômicas, as condições de saúde mental, os discursos de ódio e intolerância que ganham força na sociedade, notadamente nas redes sociais, mas também na política institucional.
Representatividade e games
Não podemos ignorar que os jogos são espaços que podem representar diferentes perspectivas da nossa cultura e da nossa história. Na Bahia, por exemplo, muitos games são desenvolvidos com esse viés, o que dá margem para o importante debate de representatividade e ocupação dos espaços por grupos que reivindicam direitos.
Para o presidente Lula, podemos sugerir conhecer o Árida, que tem como pano de fundo o sertão nordestino à época de Canudos e uma mulher negra como protagonista. O jogo, lançado em 2019, foi produzido por desenvolvedores independentes da Aoca Game Lab, de Salvador.
A narrativa, que conta a história de Cícera, adolescente de 13 anos que precisa enfrentar diversos desafios para driblar tanto a fome quanto a seca, foi criada com base na interdisciplinaridade, mais um fato que demarca que videogame e educação andam lado a lado.
Para Árida ser desenvolvido com uma ambientação fiel a da época pretendida, a equipe contou com a ajuda de historiadores da Universidade do Estado da Bahia, pioneira nas pesquisas sobre jogos como ferramentas pedagógicas. Além disso, os realizadores foram pessoalmente até a região de Canudos, no sertão da Bahia, onde encontraram mais informações cruciais para tornar Árida um espaço de cultura e representatividade.
Outro game que sugerimos Lula conhecer é Revolta dos Búzios - 220 anos, um videogame que busca resgatar a cultura do povo preto baiano. Criado pelo estúdio Strike Game, que tem como foco cursos de desenvolvimento de games educacionais para professores, o jogo traz à tona a história do movimento separatista baiano, que foi liderado por negros, e mais um canal de representatividade e informação sobre a história do Brasil.
A força da indústria brasileira de jogos digitais
Uma das assinaturas da carta é do coordenador do curso superior de Tecnologia em Jogos Digitais da Fatec São Caetano do Sul e e da Faculdade Impacta, Alan Henrique Pardo de Carvalho, que também é professor no bacharelado em Jogos Digitais do Centro Universitário Senac (SP).
Para a coluna, o docente explicou que o Brasil é um dos maiores consumidores de jogos digitais do mundo e possui uma forte indústria, da qual fazem parte diversos profissionais não apenas do desenvolvimento, mas da gestão dos negócios e da formação de profissionais, pesquisadores e professores.
Alan reforça que a indústria brasileira de jogos digitais vem empreendendo ações há muitos anos no sentido de que o enorme público consumidor conheça e valorize a ótima produção nacional, que conta com diversos jogos reconhecidos internacionalmente, muito mais do que no Brasil.
"Quando a maior autoridade do País lança esse argumento, traz um caráter pernicioso aos jogos digitais e contribui para aumentar o preconceito, o que pode afetar negativamente as empresas e instituições de ensino e pesquisa inseridas nessa indústria", Alan Henrique Pardo de Carvalho
São detalhes como esses que o presidente da república deixou de fora no momento em que discursou sobre os jogos digitais, um improviso desnecessário diante da importância do tema.
Nesse caso, é fundamental que o governo abra o diálogo com os pesquisadores da área, de forma democrática, para construção de uma visão embasada sobre o setor de games, potencializando as iniciativas que já contribuem para despertar nos jovens o amor e a educação, reclamada pelo presidente.
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