André Santana

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Opinião

A arte de Ludmilla deveria combater intolerância e não apenas retratá-la

O show da cantora Ludmilla no Festival Coachella, na Califórnia, tinha tudo para só gerar boas notícias para a artista e para o Brasil.

Trata-se da primeira apresentação de uma mulher afrolatina em um dos maiores festivais de música do mundo e contou, inclusive, com a voz da estrela Beyoncé anunciando a entrada da brasileira no palco.

Porém, um frame de alguns segundos em um vídeo na performance de uma das canções gerou muitas críticas contra Ludmilla e acusações de intolerância religiosa.

A canção era "Rainha da Favela" e no vídeo exibido no telão, entre imagens do cotidiano das favelas cariocas captadas pela artista audiovisual Ana Julia Theodoro, a Najur, o registro de um cartaz em um poste com a mensagem: "Só Jesus expulsa o Tranca-Rua das pessoas".

Artistas responderam que a intenção era retratar favelas 'sem filtros'

As artistas Ludmilla e Najur se defenderam tentando explicar que a intenção era retratar a realidade, "sem filtros, sem gourmetizações, sem representações caricatas, uma denúncia sobre o real".

Mas faltou a condenação daquela prática criminosa. Faltou retratar que neste cotidiano tem muita gente sofrendo por conta de frases como essa. Faltou se interessar pelas consequências da imagem na vida de tanta gente. Faltou o compromisso efetivo em combater a intolerância, inclusive com imagens positivas das religiões de matriz africana que tanta esperança e socorro oferecem às pessoas que sofrem as mazelas racistas deste país.

Assim, restou espaço para interpretações da intenção de Ludmilla, que é evangélica, em dar visibilidade para esse tipo de discurso ofensivo.

É difícil acreditar nessa possibilidade, mas além da falta no cuidado ao escolher as imagens, a resposta da artista, ao não admitir o erro, não expressou o que pode ser feito, efetivamente, do seu lugar de popularidade e sucesso, para que esse tipo de cartaz não seja mais aceito e reproduzido pelos postes do Brasil.

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Ódio religioso explícito nas ruas do Brasil

A frase exibida no telão revela como o ódio contra as religiões de matriz africana é explícito de forma pública e sem pudor nas ruas das cidades brasileiras — em especial no Rio de Janeiro, onde Exu Tranca-Rua é uma das entidades mais populares e respeitadas pelos religiosos da umbanda.

A repercussão da imagem gerou revolta entre as pessoas que sofrem diariamente com o racismo religioso e a deturpação da sua fé, historicamente associada a aspectos negativos.

A situação ganha ainda mais relevância dada à crescente perseguição que os adeptos do candomblé e da umbanda vêm sofrendo de certas igrejas neopentecostais que passaram a dominar a crença religiosa e as manifestações culturais dos moradores das periferias brasileiras. São muitas as denúncias de ofensas e agressões, incluindo invasões de espaços sagrados por criminosos movidos pelo fanatismo e pelo ódio às manifestações negras.

Associada a discursos conservadores e moralistas, a intolerância religiosa é abraçada pela extrema direita, que propaga a farsa da "cristofobia" e condena, entre outras expressões, os bailes funk defendidos por Ludmilla e o amor entre pessoas do mesmo sexo, outra bandeira da artista assumidamente bissexual.

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O caso também gerou manifestações violentas de preconceito contra Ludmilla vindas de pessoas que aguardam erros como esse para expor o incômodo que sentem diante do sucesso de uma artista que carrega na pele e na origem social as marcas do que é rejeitado pelo machismo, racismo e homofobia do Brasil.

É inegável que a falha de uma mulher negra, vinda da favela, ganha proporções de um verdadeiro linchamento e tentativa de desmerecimento da sua arte e do espaço alcançado por ela com a sua música. É preciso separar bem as necessárias críticas ao erro cometido das ofensas que só reforçam a intolerância e o ódio racial.

Érika Hilton cobrou a artista a refletir e avançar no debate

A deputada federal Érika Hilton (Psol), homenageada no show de Ludmilla com um discurso contra qualquer tipo de ódio, racismo, homofobia, transfobia, xenofobia e misoginia, usou as redes sociais nesta segunda (22) para cobrar que a cantora aproveite esse acontecimento e a oportunidade para avançar nesse debate e reparar danos causados.

"Quando se projeta essa realidade em um show do porte do show de Ludmilla no Coachella, é necessário refletir isso. Mensagens como essa, sem nenhum contexto, podem criar mais danos à luta pela liberdade religiosa ao invés de ajudar a combater essa realidade de preconceito e violência contra pessoas de axé", Érika Hilton, em postagem no X (ex-Twitter).

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Que a arte de Ludmilla continue orgulhando o povo brasileiro, em especial, as populações pobres das favelas, repletas de mulheres pretas que enfrentam diariamente diferentes manifestações de violência, muitas delas conhecidas na pele pela própria cantora.

Que Ludmilla compreenda e respeite a dor das pessoas que professam a fé em entidades negras, como Exu Tranca-Rua, e inclua entre suas posturas artísticas o combate à intolerância religiosa.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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