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Coronavírus na favela: como sobreviver à pandemia e à fome?

Colunista do UOL

24/03/2020 14h25

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"Não, não estamos todos no mesmo barco. Quando muito, estamos no mesmo mar, mas uns em iates e outros agarrados a um tronco" (meme anônimo).

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Agarrados a um tronco estão 13,6 milhões de brasileiros que moram em favelas, uma população maior do que a cidade de São Paulo.

Desse total, 32% estão ameaçados de ficar sem dinheiro nem para comprar comida, como revela pesquisa inédita do Data Favela, publicada na Folha nesta terça-feira.

Confinados em suas precárias habitações, sem poder trabalhar, 72% não têm dinheiro guardado nem para manter o já baixo padrão de vida por uma semana sequer.

São, em sua grande maioria, trabalhadores sem carteira assinada, ambulantes, profissionais autônomos, pequenos comerciantes, diaristas, flanelinhas, os chamados "empreendedores" da reforma trabalhista sem mais empregos formais, que trabalham por conta própria para sobreviver.

"Se não houver ações efetivas, públicas e privadas, garantindo provimento de produtos básicos, como alimentos, internet e artigos de limpeza, pode haver revolta nas favelas", alerta Renato Meirelles, fundador do Data Favela, uma parceria do Instituto Locomotiva com a Cufa (Central Única das Favelas).

Segundo a pesquisa, 79% já começaram a cortar gastos básicos por conta da crise econômica e 81% estão muito preocupados com o avanço da pandemia do corinavírus, que ainda não chegou às favelas.

"É uma questão humanitária", diz Douglas Belchior, membro da coordenação nacional da Uneafro, entidade que defende a implantação de um programa emergencial nas comunidades.

"Quando esse vírus tocar o chão das favelas e dos morros, veremos genocídio no Brasil".

Enquanto o governo federal ainda estuda a concessão de um "voucher" (o nome chique do popular vale) para 20 milhões de carentes, no valor de R$ 200 (um quinto do salário mínimo para sobreviver por três meses), líderes comunitários estão organizando mutirões para se auto socorrer mutuamente.

"Não podemos esperar a ação do Estado porque a história nos mostra que ele não irá nos salvar, mas tirar nossas vidas", desabafa Belchior.

Em Paraisópolis, como informa reportagem de Fernanda Mena e Emilio Sant´Anna, estão sendo organizados comitês nos bairros, com presidentes de cada rua.

Esses comitês vão mapear a situação de grupos de 50 casas e farão a ponte com a união de moradores, para fornecer marmitas aos mais necessitados, produzidas numa cozinha comunitária.

Se para a classe média a quarentena causa transtornos em suas rotinas, para os favelados a ameaça do coronavírus é muito maior, com suas moradias precárias, empilhadas nos becos estreitos, muitas vezes sem saneamento, sem água nas torneiras nem dinheiro para comprar sabão.

Com as crianças sem aulas, elas ficaram também sem a merenda escolar, que para muitas é a única refeição do dia.

Como mantê-las confinadas o dia inteiro em cubículos onde mal cabem os adultos, convivendo com idosos, sem ter onde brincar?

Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis e articulador do G10, que reúne líderes de favelas de todo o país, estranha não ter ainda ouvido "a palavra favela sair da boca dos políticos que estão tratando da pandemia, com o presidente falando que é uma gripinha".

Por isso, ele diz que não há mais tempo a perder. "A favela vai ter que começar a fazer as coisas por si e dar o exemplo".

O pessoal do tronco sabe que só pode contar com ele mesmo para tourear o mar cada vez mais encapelado. O vento virou, mas os iates sempre estarão a salvo.

Vida que segue.