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De Rodrigues Alves a Bolsonaro: vacinação obrigatória já causou revolta

Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, na assinatura da MP para produção de vacina contra covid-19 [Reprodução/TV Brasil]  - Reprodução/ TV Brasil
Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, na assinatura da MP para produção de vacina contra covid-19 [Reprodução/TV Brasil] Imagem: Reprodução/ TV Brasil

Colunista do UOL

02/09/2020 17h40

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Nas idas e vindas da História, em novembro de 1904 (não é do meu tempo...), o Rio de Janeiro ainda era a capital da jovem República brasileira e, Rodrigues Alves, o nosso presidente.

Foi quando estourou a Revolta da Vacina, um motim popular que durou sete dias e deixou o saldo de 30 mortos, 110 feridos, 945 presos na Ilha das Cobras e 461 deportados para o Acre.

O motivo da revolta foi uma lei que tornou obrigatória a vacinação contra a varíola, numa cidade sem saneamento básico e precários serviços públicos, já assolada por outras epidemias, como a febre amarela e a peste bubônica.

Rodrigues Alves queria modernizar a cidade herdada do período colonial e iniciou uma série de reformas urbanas e sanitárias.

Para isso, contava com o engenheiro Pereira Passos, prefeito do Distrito Federal, que mudou o desenho da cidade, e o médico sanitarista Oswaldo Cruz, da Diretoria Geral de Saúde Pública, encarregado de combater as epidemias.

O projeto da vacina obrigatória exigia comprovantes de vacinação para fazer matrículas nas escolas, conseguir empregos, casar e viajar. Havia multas para quem se recusasse a ser vacinado. Os vacinadores entravam nas casas sem pedir licença.

A reação foi tão violenta que o governo teve de debelar a tentativa de golpe promovida por um grupo de militares e alguns setores civis, na madrugada de 14 para 15 de novembro daquele ano, e decretar Estado de Sítio.

Passa-se mais de um século e, em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro promulga uma lei semelhante, a de nº 13.979/20, chamada "Lei do Coronavírus", tornando a vacinação obrigatória contra a Covid-19 uma das medidas a serem adotadas compulsoriamente pelas autoridades. Não houve desta vez nenhuma reação popular.

Ou Bolsonaro esqueceu da lei que sancionou, ou alguém o alertou sobre o que aconteceu em 1904, mas o fato é que, nesta terça-feira, o presidente deu uma força à campanha contra a vacinação obrigatória cevada nas redes sociais, soltando mais uma basófia presidencial: "Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina".

Como é que ficamos?

Vale a lei de Bolsonaro ou a basófia de Bolsonaro? No vai-da-valsa deste governo, ganharam força os devotos antivacina, que comemoraram as declarações do presidente: "Impor obrigações definitivamente não está nos planos".

Sem especificar quais são os planos para a vacinação, a propaganda de Bolsonaro assegura que "o governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros". Liberdade para viver ou para morrer?

Em lugar do grande médico sanitarista Oswaldo Cruz, temos hoje um general interino permanente no Ministério da Saúde, que nomeou um veterinário para cuidar do programa de vacinação.

Mas não estamos sozinhos nessa encruzilhada. Reportagem de Javier Salas, no jornal espanhol El País, relata que uma quarta parte dos franceses e dos norte-americanos não tomaria a vacina se ela já estivesse disponível. No Reino Unido, 12% da população não se vacinariam, e mais de 18% tentariam que familiares ou amigos não se imunizassem.

"Estamos a tempo de fazer as coisas direito, mas agora é mais difícil do que numa situação normal, e isso me leva a pensar que veremos crescer os movimentos antivacina", prevê o sociólogo Josep Lobera, que acaba de publicar um estudo associando o sentimento na Espanha à desconfiança em relação à medicina convencional.

Num país como o nosso, onde todo mundo desconfia de todo mundo e os maiores absurdos viram verdades absolutas na internet, dá para imaginar a confusão que vai dar quando a vacina finalmente chegar por aqui.

Mudam os tempos, mudam os presidentes, mas agora não há mais revolta.

Tudo se normalizou na paz dos cemitérios dos mais de 112 mil mortos na pandemia, até agora.

Vida que segue