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Balaio do Kotscho

Dia do Nordestino: lembranças do Brasil de Patativa do Assaré

O poeta Patativa do Assaré: personagem de um outro Brasil que já existiu - Eduardo Knapp-16.dez.1998/Folhapress
O poeta Patativa do Assaré: personagem de um outro Brasil que já existiu Imagem: Eduardo Knapp-16.dez.1998/Folhapress

Colunista do UOL

08/10/2020 17h16

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Pouca gente sabe, mas no dia 8 de outubro comemora-se em São Paulo o Dia do Nordestino, data criada em 2009 pela Câmara Municipal em homenagem ao poeta, cantor e compositor cearense Antônio Gonçalves da Silva, celebrado em todo o país como o grande Patativa do Assaré, autor de "Triste Partida, poema musicado e gravado por Luiz Gonzaga, o Gonzagão.

São Paulo é hoje o maior reduto de nordestinos fora do Nordeste.

Que se danem os fatos do dia, sempre aquela mesma muvuca politiqueira que não sai do lugar, mas hoje quero lembrar da felicidade que foi entrevistar Patativa, percorrendo com ele as ruas de Assaré (CE), até a casa de sítio onde ele nasceu.

Quis o destino que eu fosse um dos últimos repórteres a entrevistar Patativa e Gonzagão, dois ícones da genuína cultura brasileira, tão vilipendiada e esquecida.

Consegui achar no Google a reportagem que fiz com Patativa para a revista "Época", da Editora Globo, a primeira publicada com áudio no site da publicação, em dezembro de 2000, por uma implicância do poeta, que só gostava de dar entrevistas no gravador, um apetrecho que eu não usava.

"Sou muito zeloso com as palavras que digo", justificou, e mandou um neto pedir emprestado um gravador na rádio da cidade.

Dia do Nordestino é comemorado em 8 de outubro - Reprodução - Reprodução
Dia do Nordestino é comemorado em 8 de outubro
Imagem: Reprodução
Luiz Gonzaga em noite de Lua cheia

A entrevista de Gonzagão, que fiz mais ou menos na mesma época para a extinta revista "Estilo Brasil", com o fotógrafo Ronaldo Kotscho, meu irmão, no sítio do cantor em Exu, no sertão de Pernambuco, não consegui mais encontrar. Ele nos contou sua história numa noite de lua cheia ao som da inseparável sanfona. Lua era o apelido dele.

Essas duas figuras antológicas fizeram aumentar meu amor pelo Nordeste, um lugar onde eu gostaria de ter nascido.

Para que ninguém esqueça quem foi Patativa do Assaré, reproduzo abaixo os parágrafos iniciais da matéria "Viagem ao mundo do poeta passarinho, que chega aos 91 anos sem ver nem ouvir direito, mas continua a cantar a terra natal e sua gente".

***

Nunca um apelido foi tão certeiro. Metro e meio de altura, chapéu de feltro preto, camisa azul de mangas compridas e calça meio cor de rosa, sempre de óculos escuros. Lenda viva que não vê nem ouve. Parece mesmo uma patativa, o pássaro sertanejo de mil e um sons.

Às vésperas da festa de 91 anos, que completa neste domingo, Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, passa os dias cantando e declamando pelo longo corredor da casa amarela de fachada estreita transformada em atração turística de uns anos para cá [ele morreu nesta casa em 8 de julho de 2002].

O Brasil demorou a descobrir a grandeza da obra de Patativa do Assaré. Por isso, agora, ele não se queixa do assédio diário dos turistas. Depois da visita ao Memorial Patativa do Assaré, inaugurado há um ano em frente à sua casa, do outro lado da Praça da Matriz, todos querem conhecê-lo pessoalmente.

O maior poeta popular vivo brasileiro se recusa a sair do lugar onde nasceu, a pequena Assaré, cidade de 19.600 habitantes, a 585 quilômetros de Fortaleza, no agreste do Ceará.

É fácil encontrá-lo. A rua onde mora, Coronel Onofre, começa onde acaba a estrada que vem de Juazeiro do Norte, a terra do Padre Cícero, passando pelo Crato e por Nova Olinda. A paisagem física e humana empobrece à medida em que se avança pelo Cariri em direção ao Sertão dos Inhamuns. Assaré, termo tupi-guarani que significa atalho, fica no meio do caminho.

"Aqui ando para lá e para cá feito papagaio na gaiola, mas não me queixo. Não sou o primeiro cego do mundo", vai se apresentando, a fala cantada e rouquenha. Os achaques da saúde que lhe tomaram a vista e a audição, obrigando-o a andar de muleta, não o abatem. Perdeu o olho direito quando tinha 4 anos e só enxerga vultos com o esquerdo.

"Ninguém no mundo é mais feliz do que eu", garante, ao acender outro cigarro barato, companheiro inseparável desde os 10 anos. Só perde o bom humor quando os parentes tentam impedi-lo de fumar por causa da tosse crônica. Uma tragada, uma pigarreada e uma cuspida no chão vão pontuando os versos que brotam da sua fantástica memória.

Da cadeira de balanço comanda a família como os antigos patriarcas. Teve 14 filhos com Belinha, morta em 1994. Foram 60 anos de casamento. Os sete vivos, 29 netos e sete bisnetos o chamam de Sinhozinho. Quando fala sobre o futuro, Patativa fica sério, pensativo.

"Não dá para falar nada sobre o futuro do Brasil. Porque o presente é um caos de miséria, de violência, de corrupção, tudo uma coisa desagradável".

Eclético, Patativa é amigo é Tasso Jereissati [ex-governador e atual senador do Ceará] para quem já fez campanha, eleitor de Lula e crítico do governo de Fernando Henrique Cardoso. Mas só fala de política quando está entre amigos.

Não gostou de saber que a entrevista não estava sendo gravada. "Você não está gravando?", estranhou, quando lhe pedi para falar mais devagar, habituado a repórteres mais modernos. Os cuidados de Patativa têm uma razão de ser: ele nunca foi de escrever canções e poemas, mas de dizê-los, cantá-los, declamá-los, geralmente de improviso. Vêm em forma de repentes e cordéis. A oralidade é uma característica da sua produção. No Memorial Patativa do Assaré, há apenas dois cadernos de manuscritos O gravador tornou-se importante instrumento para preservar a obra do poeta em permanente criação.

"Sou o poeta da justiça e da verdade", autodefine-se. "A bagagem que tenho trago da roça. Diferentemente de outros que escrevem, minha poesia trago retida na memória. Sou o poeta do social, da realidade, sou o poeta do povo". Seu tema principal é Deus.

"Ele não passou a escritura da terra para ninguém. Por isso, cada camponês deveria possuir um pedaço de chão. Não há maior padecer do que ver um caboclo sem terra para trabalhar.".

Patativa se empolga, sobe o tom de voz e declama um trecho do poema "Eu Quero":

A bem do nosso progresso/

Quero o apoio do Congresso/

Sobre uma Reforma Agrária/

Que venha por sua vez/

Libertar o camponês/

Da situação precária.

***

Não se fazem mais Patativas como antigamente. Não podemos permitir que eles caiam no esquecimento.

Quando e onde foi que perdemos essa dignidade e a esperança?

Vida que segue.