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Balaio do Kotscho

OPINIÃO

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Garimpo em terras indígenas: prioridade de Bolsonaro é reviver Serra Pelada

Garimpeiro de Serra Pelada, no sul do Pará, retratado por Sebastião Salgado no começo dos anos 1980 -
Garimpeiro de Serra Pelada, no sul do Pará, retratado por Sebastião Salgado no começo dos anos 1980

Colunista do UOL

09/02/2021 15h35

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Na lista de 19 iniciativas legislativas prioritárias para o governo que Bolsonaro entregou à Câmara na semana passada, o quinto item me chamou a atenção, mas não teve muito destaque na mídia:

"PL 191/2- _ Mineração em terras indígenas: regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas".

Assinado pelo presidente no dia 5 de fevereiro do ano passado, quando o governo completava 400 dias, o projeto nunca seria colocado em pauta pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Agora, com o Centrão finalmente no poder, a porteira foi aberta para passar a boiada na Amazônia, como queria Ricardo Salles.

Liberar os garimpos nas reservas indígenas é uma antiga obsessão de Bolsonaro, desde a sua chegada à Câmara como deputado do baixo clero, em 1991. Em sua juventude, o presidente conta que chegou a trabalhar em garimpo.

Quem mais se empolgou na solenidade de lançamento do projeto foi o ex-ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que agora voltará ao Planalto como secretário-geral:

"Pois hoje, presidente, com sua assinatura será a libertação. Nós teremos a partir de agora a autonomia dos povos indígenas e sua liberdade de escolha. Ou seja, será a Lei Áurea".

O que acontecerá agora, na verdade, não é autorizar a invasão de garimpos nas terras indígenas, que já acontece em escala crescente desde a posse de Bolsonaro.

Trata-se apenas da oficialização de uma situação de fato, que está envenenando com mercúrio as águas das aldeias, provocando doenças e mortes de índios em suas reservas demarcadas previstas na Constituição.

Diante do Palácio do Planalto, no dia 2 de outubro de 2019, Bolsonaro subiu numa cadeira para falar a meia dúzia de garimpeiros de Serra Pelada que pediam a intervenção das Forças Armadas no antigo garimpo. E deu a senha, ao criticar as ONGs ambientalistas que defendem a preservação da Amazônia:

"O interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério".

Neste dia, escrevi aqui no Balaio:

"Por um momento, vi ali reencarnado o famigerado major Sebastião Rodrigues de Moura, alcunhado de Curió, nomeado pelo general João Figueiredo, o último dos ditadores militares, para ser interventor plenipotenciário no maior garimpo a céu aberto do mundo".

Curió, que mais tarde seria recebido por Bolsonaro em audiência no Palácio do Planalto, foi o último símbolo da ditadura militar, com poder de vida e morte sobre os miseráveis civis, lavradores do sul do Pará e do sudoeste do Maranhão, que largaram tudo e correram em busca do ouro "como nunca se viu" na terra prometida de Serra Pelada.

Naquela época, início dos anos 1980, como agora, o desemprego grassava no país e posseiros desalojados de suas terras por grileiros e grandes fazendeiros viram ali a salvação da lavoura.

A epopeia de Serra Pelada, onde muitos garimpeiros morreram, arriscando a vida, subindo com pesados sacos de terra em escadas improvisadas, chamadas de "adeus, mamãe", eu conheço bem. Não é de ouvir falar.

Fui um dos primeiros repórteres a entrar no garimpo, junto com o grande fotógrafo Ubirajara Dettmar, um baixinho da Folha, quando ainda se tentava manter a descoberta do tesouro em segredo. E para lá eu voltaria muitas vezes, antes que o ouro acabasse, e depois também, deixando apenas cicatrizes na terra escavada e uma legião de miseráveis.

Até escrevi um livro sobre o garimpo _ "Serra Pelada _ Uma ferida de ouro aberta na selva" (Editora Brasiliense, 1984) _, que ainda está à venda nos sebos da internet e chega a custar R$ 200, mas tem também por R$ 50 na Estante Virtual.

Com fotos de Jorge Araújo, conto o dia a dia desta grande aventura humana, que rendeu mais de 41 toneladas de ouro, e acabou em tragédia, com uma epidemia de lepra no favelão em que o garimpo se transformou.

Na primeira viagem, foi duro convencer o piloto de um teco-teco mambembe a nos levar até lá. Um refugiado angolano foi o único que encontramos em Marabá, a 150 km de distância, com coragem para descer em Serra Pelada.

Nem pista havia. Foi a a primeira vez que ouvi um piloto buzinar na aterrissagem porque havia muita gente na frente, caminhando na estreita fresta de terra vermelha aberta na mata. Como ninguém saia da frente, o monomotor teve que arremeter e quase batemos num morro em frente.

Uma vez em terra firme, me deparei com o cenário mais assustador que já havia visto na vida, onde reinava o poderoso major Curió, uma área transformada em segurança nacional, onde não podiam entrar mulheres nem bebidas e o exército der garimpeiros tinha que se perfilar para hastear a Bandeira Nacional todas as manhãs.

Imaginem um Maracanã lotado, virado de ponta cabeça, debaixo da terra, com 100 mil homens se arrastando nos barrancos em busca de ouro.

Claro que agora não serão mais românticos garimpeiros e aventureiros de todo tipo como os que se arriscavam por aquelas terras, mas empregados de grandes mineradoras, nativas e estrangeiras, que estão só esperando o sinal verde para dar a largada na exploração das reservas indígenas.

Não sobrarão índios nem árvores para contar a história da Amazônia invadida, ocupada e dilacerada pelo "progresso". Teremos muitas serras e muitas terras que ficarão peladas.

"O indígena tem coração, tem sentimento, tem alma, tem necessidades e tem desejos, e é tão brasileiro quanto nós", justificou Bolsonaro ao assinar o projeto, que virou prioridade do governo.

Em pouco tempo, caminhando mais de 30 quilômetros pela selva fechada, quando não havia estrada para Serra Pelada, milhares de garimpeiros transformaram a área num formigueiro humano. Como será agora, na nova corrida ao ouro e outras riquezas, com as grandes mineradoras entrando na disputa?

Veja também comentário no Youtube:

https://youtu.be/NI4eKEwINhk

Vida que segue.