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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A Guerra da Amazônia : o lancinante grito de socorro de Eliane Brum

Indígenas protestam em Atalaia do Norte (AM) contra o desaparecimento de Bruno e Dom - Bruno Kelly/Reuters
Indígenas protestam em Atalaia do Norte (AM) contra o desaparecimento de Bruno e Dom Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Colunista do UOL

14/06/2022 14h09

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No fim da noite de segunda-feira, chegou o e-mail enviado pela minha velha amiga Eliane Brum, a mais premiada repórter brasileira, que há cinco anos foi morar em Altamira, no Pará, bem no coração da floresta, e hoje escreve para alguns dos maiores jornais do mundo sobre a guerra desencadeada pelo governo federal contra a Amazônia e seus povos originários desde os primeiros dias de 2019.

Na passagem do milênio, vinda do jornal Zero Hora de Porto Alegre, já com fama de excelente repórter, ela veio sentar-se a meu lado na redação da revista Época, em São Paulo. Por dois anos, fomos vizinhos de mesa e de sonhos.

Já naquele tempo, dava para perceber que aquela jovem gaúcha não tinha vindo ao mundo a passeio. Fazia do seu trabalho uma razão de viver para defender a vida dos seus semelhantes, em especial os mais humildes, sempre inconformada com as iniquidades e injustiças do nosso país.

Agora, 22 anos depois, ela é a voz mais ouvida mundo afora para pedir socorro, sempre que acontece mais uma tragédia na floresta, hoje entregue a quadrilhas do crime organizado, com o desmonte de todas as estruturas estatais de fiscalização, controle e preservação na Amazônia.

"Não é incompetência nem descaso: é método", escreve ela no título do texto que enviou aos amigos, publicado no jornal independente Nexo (os próximos artigos serão publicados no New York Times e no El País).

A jornalista Eliane Brum em reportagem na Amazônia - Lilo Clareto/Divulgação - Lilo Clareto/Divulgação
A jornalista Eliane Brum em reportagem na Amazônia
Imagem: Lilo Clareto/Divulgação

Uma das primeiras vítimas deste método de destruição, lembra ela no texto, foi exatamente o indigenista Bruno Pereira, um dos mais competentes de sua geração, exonerado do cargo de coordenador de povos isolados no Vale do Javari, quando Sergio Moro era ministro da Justiça do recém-empossado governo Jair Bolsonaro.

Pereira tinha acabado de comandar uma operação de repressão contra 60 garimpos ilegais na região e foi obrigado a pedir licença para continuar seu trabalho, agora como assessor da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), até desaparecer na floresta no domingo (5) junto com o jornalista inglês Dom Phillips.

"Com a tragédia de Dom Phillips e Bruno Pereira, um limite foi ultrapassado na Amazônia —a nós, que estamos vivos, só cabe a luta", escreve Eliane na introdução do artigo.

E é o que ela faz neste longo texto, um doído e lancinante grito de SOS de quem está no meio desta guerra, como testemunha e combatente voluntária, do qual transcrevo abaixo alguns trechos:

"Nesta segunda-feira (13), acordei de um sono rarefeito com a notícia de que os corpos tinham sido encontrados amarrados a uma árvore. Desde a descoberta da mochila, roupas, botas, restos materiais de uma vida, de gestos interrompidos, de desejos, um frio se instalou dentro de mim, de dentro para fora, e passei a noite tremendo. Para este frio não há cobertor. Para este frio nunca haverá cobertor. Algum tempo mais tarde, a notícia foi desmentida. Os objetos pertenciam a eles, mas ainda não haveria corpos. No momento em que escrevo, não sabemos se os corpos foram ou não encontrados. É mais uma obscenidade do atual contexto do Brasil.

Meu maior temor desde a semana passada era que os corpos não fossem encontrados, porque acompanho a dor dilacerante de familiares de desaparecidos políticos da ditadura empresarial-militar que Jair Bolsonaro tanto exalta. Não ter um corpo para chorar é a tortura que jamais acaba, é o luto que não pode se completar e, portanto, jamais será superado. Ainda assim, descobri nesta manhã de segunda, havia algo dentro de mim esperando por um milagre, porque quebrei. Levei algumas horas para reunir minha raiva e me colocar em pé para escrever este texto. E aí quebrei de novo pelo horror de não saber qual é a informação verdadeira.

Dom e Bruno possivelmente estão mortos. São as mais recentes vítimas da guerra liderada por Bolsonaro contra a floresta, seus povos e todos aqueles que lutam em defesa da Amazônia.

Este é o ponto.

O desaparecimento de Dom e Bruno é apenas a mais recente violência da Amazônia aprisionada neste país a que chamamos Brasil, governado por um defensor da ditadura, da execução e da tortura chamado Jair Bolsonaro. Estamos em guerra. E afirmar isso não é retórica.

É desesperador ficar gritando que estamos em guerra e não sermos entendidos. Porque entender não é concordar, retuitar ou dar likes, é algo mais duro: é agir como pessoas que vivem uma guerra. Se no Brasil e no mundo as pessoas não compreenderem isso desta vez, as vidas de quem está no chão da floresta, com os corpos na linha de frente, valerão ainda menos do que valem agora. E quando as lideranças dos povos-floresta, os ambientalistas, defensores e jornalistas da linha de frente estiverem mortos, a floresta também estará. Sem a floresta, o futuro será hostil para as crianças que já nasceram. Filhos, sobrinhos, netos, irmãos de quem está lendo este texto. Sua gente. Vocês.

O que quero dizer é que esse movimento imenso, forte e potente que será feito por Dom e Bruno, do qual fiz parte desde literalmente o primeiro minuto, precisa agora se ativar por todos".

O título do livro que Dom Phillips estava escrevendo era "Como Salvar a Amazônia?"

Essa é uma resposta que todos nós deveremos dar agora ou em não muito tempo não sobreviverá ninguém para contar a história.

Toda força para Eliane Brum, a nossa guerreira da reportagem, que não desiste nunca.

Vida que segue.