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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na tragédia de Caraguatatuba, vítimas viviam na planície, não nas encostas

18.mar.1967 - Avalanche causada pelas chuvas em Caraguatatuba; de uma tragédia a outra, passaram-se 56 anos - Folhapress
18.mar.1967 - Avalanche causada pelas chuvas em Caraguatatuba; de uma tragédia a outra, passaram-se 56 anos Imagem: Folhapress

Colunista do UOL

22/02/2023 13h57Atualizada em 24/02/2023 15h59

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Atualizado às 14h48 de 24/2, com correção de erro: diferentemente do publicado, o acesso a Ubatuba na época da catástrofe de 1967 em Caraguatatuba era feito pela rodovia Oswaldo Cruz.

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Antes de São Sebastião, uma tromba d'água arrastou o trecho da Serra do Mar por onde passava a antiga estrada dos Tamoios, que desabou sobre Caraguatatuba, outra cidade do litoral norte de São Paulo, a 20 quilômetros de distância, deixando 436 mortos na planície, pelas contas oficiais, fora os desaparecidos nunca encontrados. Em São Sebastião, até o momento em que escrevo, morreram 48 pessoas e 57 estão desaparecidas.

A grande diferença entre essas duas tragédias na mesma região é que, em Caraguatatuba, quem morava nas encostas dos morros no entorno da cidade se salvou porque a água não chegou lá, bem ao contrário do que aconteceu agora, quando a maioria das vítimas morava pendurada em barracos plantados na serra ao longo da Rio-Santos.

Foi em 1967, quando começava a trabalhar como repórter do Estadão. Com 17 anos, fui um dos primeiros a conseguir chegar ao local da catástrofe. Faz exatamente 56 anos, pois é, o tempo passa correndo. Mas as imagens daquela tragédia nunca mais vão sair da minha memória, que já não anda lá essas coisas.

Por isso, recorro mais uma vez ao meu livro de memórias — "Do Golpe ao Planalto - Uma vida de repórter" (Companhia das Letras, 2006) — para lembrar e contar como foi essa cobertura, no tempo em que não havia smartphone nem wi-fi, e nada dessas coisas modernas que só seriam inventadas uns 30 anos depois.

Dez da noite. Tinha poucas semanas de jornal, quando recebi a ordem: "Ricardinho, te prepara. Maior tragédia em Caraguatatuba, centenas de mortos, vou te mandar pra lá. Pega um fotógrafo". Sempre calmo, o chefe de reportagem, o grande Clóvis Rossi, já falecido, parecia meio nervoso.

Primeiro desafio: a rodovia dos Tamoios, por onde eu passara poucos dias antes, ao voltar das férias justamente em Caraguatatuba, tinha desaparecido no trecho da serra. A alternativa era seguir pela via Dutra, até São Luís do Paraitinga, e descer a rodovia Oswaldo Cruz até Ubatuba, um trecho até hoje muito perigoso. Dali para a frente, só Deus sabia como chegar a Caraguatatuba, a uns 50 quilômetros de distância. .

Continuava chovendo forte e as notícias no rádio eram cada vez mais assustadoras — risco de epidemias, único hospital da cidade inundado, falta de água, luz e comida. Soldados do Exército e da PM não queriam deixar nenhum carro passar, quando faltavam apenas dez quilômetros para chegar. O experiente fotógrafo Rolando de Freitas negociou com eles, mostrou o carro de reportagem e pudemos seguir adiante.

Na primeira viagem como "enviado especial" do jornal, já me dava conta da importância dessa parceria — mais que isso, cumplicidade — com os fotógrafos.

Fomos direto para o QG da Defesa Civil instalado pelo governo do estado no único hotel que permanecia aberto, bem no centro da cidade. Foi lá que encontrei o repórter especial Luiz Roberto de Souza Queiroz, que chegou antes, viajando por conta própria, no carro dele. Rapidamente, dividimos as tarefas: a parte oficial — providências das autoridades, número de mortos e feridos, situação no hospital — ficou com ele e eu fui contar histórias dos sobreviventes, aquela gente anônima que só entra nas estatísticas.

Policiais e políticos, jornalistas e médicos, flagelados em busca de parentes, todo mundo ficava andando de um lado para outro, sem saber direito por onde começar a tarefa de cada um. Eu anotava tudo o que via e ouvia, mas logo descobri que não tinha como enviar o material para o jornal. Todas as comunicações estavam interrompidas.

Apenas algumas semanas antes, eu estava na mesma cidade, escrevendo poemas para vender, pensando somente em passar no vestibular de jornalismo e naquela menina que passeava de bicicleta em frente à minha casa; Caraguatatuba era uma festa para os turistas.

Agora, sentado na cama do hotel, tentava descrever o cenário de terra arrasada para os leitores do jornal, sem saber como a história chegaria à redação. O fotógrafo Rolando logo encontrou uma solução: "Não tem outro jeito: temos que voltar para Ubatuba e tentar mandar filmes e textos para São Paulo em algum avião da FAB".

Levávamos mais de três horas para percorrer os 50 quilômetros entre os dois municípios, uma verdadeira corrida de obstáculos. Colocamos todo o material num envelope, e pedimos ao piloto da FAB que avisasse o jornal tão logo chegasse a Santos, onde alguém da redação buscaria o envelope.

No dia seguinte, 26 de março, a primeira reportagem informava:

"Caraguatatuba já tem água, graças a uma mina encontrada pelos bombeiros no Morro do Tatu (...).

Um caminhão do Exército que transportava parte da ponte metálica móvel, procedente do rio Grande do Sul, que será instalada provisoriamente sobre o rio Santo Antonio, tombou ontem na estrada São Luís do Paraitinga-Ubatuba. (...).

A região ribeirinha do rio Guaxinduba deveria ter sido dinamitada ontem de manhã, pois grandes toras de madeira estão prejudicando o serviço de limpeza da região e obstruindo a estrada que dá acesso à praia de Martim de Sá(...).

Na Martim de Sá, era onde eu passava as férias de verão, uma praia quase deserta, hoje totalmente tomada por um paredão de prédios, depois da construção da Rio-Santos, que abriu a região para o turismo. Hoje, tenho uma casa na praia de Toque-Toque Pequeno, em São Sebastião, que também foi atingida pela tromba d'água de 2023 e ficou toda inundada de lama.

São as voltas que a vida dá entre uma tragédia e outra...

Vida que segue.