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Camilo Vannuchi

O vírus pode nos ensinar a valorizar os servidores públicos? E o Estado?

Colunista do UOL

10/07/2020 15h12

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"Brasil começa a testar vacina contra a Covid-19". "Brasil entra em parceria com Oxford para produção de vacina". "Brasil fecha parceria para produzir vacina chinesa". Todas essas manchetes, pinçadas em portais jornalísticos nas últimas três semanas, contribuem para o que poderíamos chamar de apagamento - ou invisibilização - das instituições brasileiras dedicadas à saúde e à pesquisa. No primeiro título, onde aparece a palavra Brasil, lê-se Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No segundo, Brasil pode ser substituído por Instituto Butantan, também em São Paulo. No terceiro, o sujeito é a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), com sede no Rio de Janeiro.

Unifesp, Butantan e FioCruz têm algo em comum: são todas instituições públicas. É isso que permite que elas estejam envolvidas, cada uma à sua maneira, nas atividades de produção e testagem em massa de possíveis vacinas contra o Coronavírus. Talvez porque sejam instituições públicas, não cause nenhum constrangimento suprimir seus nomes dos títulos. Por que fazer propaganda dessas instituições? Ou ainda: para que polemizar? Como se fizesse algum sentido dividir a nação entre apoiadores e detratores da Fiocruz, defensores e opositores da Unifesp, entusiastas e críticos da balbúrdia...

Com Oxford, não. Oxford é diferente. Oxford é chique, elegante, sofisticada. Ela, sim, merece ser creditada nas matérias de jornais. Que orgulho poder dizer que o Brasil fechou parceria com Oxford! Oxford, Sorbonne ou Cambridge devem ser sempre creditadas, apesar de todas três serem universidades... públicas!

Vivemos na era da criminalização das universidades, das instituições que realizam pesquisa, do serviço público e do Estado de maneira geral. O aparente ufanismo dos títulos camufla não apenas o apagamento, mas também uma espécie de apropriação indevida do serviço público, mais comum do que se imagina quando há uma cultura estrutural, e por isso pouco percebida, de desprezo pelo que é da coletividade (ou "do Estado"). Aqui, funcionário público virou sinônimo de trabalhador preguiçoso, encostado, ao mesmo tempo em que o discurso frágil da meritocracia fez com que Estado virasse palavrão: inchado, sucateado, ineficiente.

Sem Estado forte, não há Sistema Único de Saúde nem compra de respiradores nem auxílio emergencial nem renda básica de cidadania. Sem funcionalismo público sério e dedicado, não há testes, nem produção de medicamentos em larga escala. Nem vacina. Sobretudo, é o fato de essas pesquisas estarem sendo feitas em entidades públicas que nos protege, em certa medida, da apropriação dessa tecnologia e desses lotes de vacina pelo mercado. Sobretudo numa pandemia dessas proporções, é preciso que a cura venha a galope e que ela seja gratuita para a população, sem diferenciação por CEP, DDI ou classe social.

Quando uma senhora flagrada sem máscara num estabelecimento comercial do Rio de Janeiro desrespeita o fiscal que a interpela e, ao ver que o profissional se dirigiu a seu marido como "cidadão", responde algo como "ele é engenheiro civil, formado, melhor do que você", seu gesto reproduz um discurso anacrônico e irresponsável, tão caro aos terraplanistas, que a um só tempo discrimina servidor público e despreza a ciência.

Sua atitude é também condizente com o histórico de agressões dirigidas a essas mesmas instituições por membros do alto escalão do Governo Federal. "Eu não confio nas pesquisas da FioCruz", afirmou o deputado federal Osmar Terra quando era ministro da Cidadania no primeiro ano do governo Bolsonaro. "Tudo da Fiocruz envolve LGBTI. Eles têm um pênis na porta, tapetes do Che Guevara", declarou Mayra Pinheiro, secretária do Ministério da Saúde. "Faço um apelo a meus familiares: não tomem a vacina chinesa do Doria!", exaltou-se Sergio Camargo, presidente da Fundação Palmares, referindo-se à parceria entre o laboratório chinês Sinovac Biothec e o Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo.

A propósito, Camargo adota a expressão "vacina chinesa", análoga a "vírus chinês", repetida diversas vezes por membros do Governo Federal ao longo desse período de isolamento, como estratégia preconceituosa de associar sua origem a uma ideia perversa de que a vacina pode não prestar ou ser parte de uma conspiração política internacional. "Não tomem a vacina chinesa", disse Camargo. Ele poderia ter arrematado: "Tomem cloroquina". Talquei?