Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Denúncias de abuso sexual renovam a fé no jornalismo
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Foi publicada neste UOL, há uma semana, uma das reportagens mais bem apuradas e corajosas dos últimos anos. Não uma notícia factual, mas uma série de reportagens elaborada com esmero e rigor pelos jornalistas Maria Carolina Trevisan e José Dacau. Desde novembro do ano passado, a dupla percorreu doze cidades em três Estados e entrevistou mais de quarenta pessoas para revelar, em detalhes, os métodos, as perversões e os crimes atribuídos ao padre católico Ernani Maia dos Reis, 53, acusado de abusar sexualmente de pelo menos oito religiosos - todos homens, de 20 a 43 anos - e de cometer assédio moral contra outras onze vítimas, homens e mulheres, em um mosteiro comandado por ele em Monte Sião (MG).
Além do documentário "Nosso Pai" - 42 minutos divididos em duas partes -, Dacau e Trevisan publicaram pelo menos oito matérias até esta quinta-feira (7), a maioria reunida nesta página do MOV. Os textos vão além dos fatos denunciados. Eles contextualizam a relação da Igreja com o mosteiro da Santíssima Trindade, fundado por Padre Ernani no interior de Minas Gerais - primeiramente em Passos e depois em Monte Sião -, traçam um perfil psicológico do abusador e narram os desdobramentos da própria reportagem.
Um dia após o portal soltar a primeira parte do documentário e revelar os crimes atribuídos a Padre Ernani, o Ministério Público de Minas Gerais requereu da Polícia Civil a abertura de um inquérito para investigar a conduta do religioso. No mesmo dia, o Papa Francisco ordenou a cassação das funções clericais do investigado e alterou o Código de Direito Canônico de modo a tipificar e criminalizar o abuso sexual cometido por clérigos contra adultos. Atualmente, apenas a violência praticada contra crianças é tipificada e criminalizada pela Igreja. O papa também determinou, com séculos de atraso, que os superiores religiosos poderão ser responsabilizados por omissão e negligência. As novas regras entrarão em vigor em janeiro.
Os impactos da reportagem são evidentes. E notáveis. Tudo isso demonstra que o bom jornalismo ainda respira. E transforma.
O anúncio suscitou a interpretação, algo apressada, de que o papa argentino foi rápido no gatilho. "Esse não passa pano para padre abusador", comentou-se. "A Igreja não é mais conivente como antes", foi uma das interpretações. Devagar com o andor. Os crimes de Padre Ernani foram praticados entre 2011 e 2018, segundo os relatos. No último ano, a Arquidiocese de Pouso Alegre, à qual está vinculada a paróquia de Monte Sião, foi comunicada dos abusos conforme as vítimas abandonavam o mosteiro. A debandada envolveu duas dezenas de religiosos. Violentados, deprimidos, alguns enojados, outros com a fé em frangalhos. Padre Ernani não foi expulso nem afastado.
Segundo a reportagem, o sacerdote deixou o mosteiro de forma espontânea. Foi ele quem procurou o arcebispo Dom José Luiz Majella e alegou estar desmotivado. A arquidiocese o encaminhou para seis meses de internação numa clínica de reabilitação no Paraná, especializada no atendimento de religiosos com estresse, depressão, crise de vocação e desvios de conduta - como a prática de pedofilia e assédio sexual. O custo mensal de R$ 10 mil foi pago pela Igreja. Recebeu uma licença, não uma punição. E cuidados médicos jamais oferecidos às suas vítimas. Terminada a temporada na clínica, Padre Ernani mudou-se para Franca, no interior de São Paulo, e montou um consultório de psicanálise. As reportagens não citam nenhum episódio de assédio ou abuso sexual cometido por Padre Ernani no papel de psicanalista, mas a desconfiança é patente. Um abusador à solta, numa posição marcada por liderança ou ascendência hierárquica, é sempre um risco.
Um processo, supostamente aberto na Arquidiocese em meados de 2018, teria sido encaminhado ao Vaticano, com as conclusões advindas de auditorias internas. Nenhuma resposta, nenhuma deliberação. Somente agora, três anos mais tarde, Papa Francisco se prontificou a agir. Notadamente, um dia após a publicação do documentário e das primeiras matérias do UOL.
Ainda segundo a série de reportagens, uma pesquisa recente apontou que uma em cada seis pessoas no Brasil conhece alguém que foi vítima de violência sexual cometida por um líder religioso. Metade da população diz não ser devidamente informada sobre esse tipo de violência. E 70% acreditam que o assédio sexual ainda ocorre na Igreja. Mais do que isso, é perceptível a leniência - ou negligência - que impera naquela instituição diante de evidências concretas da violência praticada por seus quadros. A passada de pano é a regra. "A Igreja Católica ainda encobre abusos sexuais", afirmou o jornalista Mike Rezendes em entrevista a Maria Carolina Trevisan. Rezendes, hoje na agência de notícias Associated Press, foi um dos repórteres investigativos do jornal Boston Globe responsáveis por denunciar um dos mais terríveis escândalos de pedofilia dos Estados Unidos. No comecinho do século, ele e equipe ficaram sabendo de um caso de pedofilia praticado pelo Padre John Georghan e descobriram que o Cardel Law, arcebispo de Boston, sabia da conduta do sacerdote e a acobertou. Graças às investigações feitas por Mike Rezendes e equipe, o Boston Globe denunciou 87 padres abusadores, sistematicamente abençoados pela omissão da Igreja Católica. A reportagem venceu uma das categorias do Prêmio Pulitzer de Jornalismo de 2013. O escândalo foi contado no filme "Spotlight", vencedor do Oscar.
A despeito das recorrentes declarações em contrário, é fato que as instituições insistem em não funcionar no Brasil. Ou funcionam em plenitude, mas comprometidas com o lado obscuro da força. A Igreja é uma delas. Líderes religiosos compartilham de uma condição que em tudo favorece sua impunidade. Sua imagem remete ao sagrado, à representação divina. Enfrentar um representante de Deus é considerado sacrilégio, profanação, coisa do demônio. Quem não atende aos desígnios do padre vai pro inferno. Quem não cede às investidas de um bispo não faz sequer escala no purgatório. Diante da retórica do sobrenatural, diante da cosmogonia do castigo e do perdão, como coibir a violência a não ser pelo caminho da fiscalização e da punição exemplar dos abusadores e de todos aqueles que passarem pano para esses crimes?
Os abusos, é bom frisar, não são exclusividade da Igreja Católica. Recentemente, o UOL noticiou o caso de um pastor de Goiás denunciado por assédio sexual por quatro mulheres. Na Netflix, é possível assistir ao documentário "João de Deus: cura e crime", que narra em detalhes os estupros e as importunações sexuais cometidas pelo médium espírita João Teixeira de Faria contra mais de trezentas vítimas. As denúncias contra João de Deus, vale lembrar, se multiplicaram a partir do testemunho das primeiras mulheres que ousaram denunciá-lo num programa de TV comandado pelo jornalista Pedro Bial. Foi como uma bola de neve. No dia seguinte, telejornais exibiram outros relatos, de outras vítimas, o que inspirou uma onda de mulheres, muitas delas até então silenciadas pelo constrangimento, por vergonha ou por ameaça, a virem igualmente a público e oficializar seu testemunho, suas denúncias, um rosário de gravíssimas acusações.
Nesta quinta-feira de outubro, enquanto finalizo essas linhas, a Justiça de Santa Catarina julga um recurso apresentado pela influenciadora digital Mari Ferrer, de 24 anos, que afirma ter sido estuprada, em dezembro de 2018, pelo empresário André Aranha, 44, numa balada de Florianópolis. A Polícia Civil investigou o caso e indiciou Aranha. No julgamento em primeira instância, no ano passado, a vítima foi humilhada pelo advogado do réu, que chegou a exibir fotografias da jovem classificando-as como "ginecológicas", reforçando com requintes de misoginia a velha tese de que a mulher, dependendo das roupas que veste e os lugares que frequenta, está ali necessariamente para ter relações sexuais e não tem a liberdade de escolher com quem nem o direito de recusar as investidas de um abusador (em especial se for branco e rico). Na sequência, o juiz absolveu o empresário, sob o argumento de que ele não tinha como saber que a moça estava dopada ou embriagada, o que derrubaria a tese de não consentimento. O caso repercutiu também graças à imprensa, sobretudo após uma reportagem do Intercept Brasil revelar as agressões dirigidas à vítima pelo advogado de defesa do réu e interpretar a sentença da seguinte forma: se houve estupro, foi um "estupro culposo", sem dolo, sem intenção de estuprar.
Um julgamento sério não deve jamais se pautar pelo apelo popular, pela midiatização do caso, e a lambança de Sérgio Moro à frente da Lava Jato - sem competência para conduzir o processo e sem a imparcialidade necessária para arbitrar - deveria servir de alerta. Mas é fundamental que o jornalismo siga vigilante e continue jogando luz sobre episódios de assédio e abuso sexual. Na Igreja ou fora dela. A imprensa, quando decide se movimentar, impõem-se como fiel da balança. E é bom que seja assim.
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