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Decana dos direitos humanos no Brasil, Margarida Genevois faz 100 anos
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"O que Deus ainda quer de mim?", Margarida pergunta para si mesmo, numa quase indignação que já a acompanha há uma década. "Acho que fui esquecida aqui", comenta, esboçando um sorriso.
Margarida Bulhões Pedreira Genevois completa cem anos nesta sexta-feira (10). Lúcida, ativa e, embora cansada, ansiosa para discutir a conjuntura na próxima reunião quinzenal da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, da qual é presidenta de honra.
Os encontros são virtuais. Se bobear, Margarida chegará à sala na próxima semana como a mais antenada do grupo. Perguntará sobre a situação em São Sebastião, comentará sobre as joias de Michelle e cobrará os colegas sobre a participação da Comissão Arns na 3ª Caminhada do Silêncio, uma marcha em descomemoração do golpe de 1964 prevista para acontecer no Parque Ibirapuera, em São Paulo, no próximo dia 2 de abril.
Com a aproximação de seu aniversário, Margarida fez circular um comunicado oficial: se alguém estiver pensando em presenteá-la, que faça uma doação a alguma organização da sociedade civil dedicada ao combate à fome. E, por sugestão do amigo Frei Betto, sugeriu por email a Hutukara Associação Yanomami, já com os dados bancários e a chave Pix. Quem tem fome tem pressa, aprendeu com Betinho.
Cem anos é muita coisa. Outro dia mesmo, Margarida celebrava os 80 num almoço campestre, rodeada de amigas e amigos. Foram 20 anos que passaram voando, segundo ela. Nesse período, o Brasil saiu do mapa da fome e voltou a ele. Elegeu a primeira presidenta da história e a escorraçou. Chegou ao 7º lugar no ranking das maiores economias do mundo e despencou para o 13º. Naufragou diante da ascensão desmesurada de uma extrema direita abjeta e hidrofóbica e só agora começa a emergir do fundo do poço.
Nesse mesmo período, Margarida perdeu pessoas muito próximas, como a filha Anne Marie e o amigo Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo, de quem foi fiel escudeira por quase quatro décadas, sobretudo nos anos em que atuou na Comissão Justiça e Paz, parte deles como presidenta.
Nos anos 1980, Margarida foi a primeira mulher não freira a representar um cardeal católico em eventos oficiais. Na mesma época, tinha procuração plena para dar declarações e divulgar notas a serem publicadas na imprensa em nome de Dom Paulo, sem nem sequer consultá-lo, tamanha a confiança.
"Dom Paulo faz muita falta", ela diz, principalmente quando se põe a analisar o papel desempenhado hoje pela Igreja Católica diante de tantas e tão graves violações de direitos. Tirando alguns poucos, como Padre Júlio Lancellotti, cujas missas dominicais ela acompanha religiosamente pelo YouTube, faltam sacerdotes verdadeiramente comprometidos com os mais vulneráveis e com a garantia dos direitos humanos, afirma.
A marcha da Margarida
Margarida mexe com esse lance de direitos humanos há muito tempo. Começou antes de virar modinha e antes que detratores como Erasmo Dias, Afanásio Jazadji e Jair Bolsonaro ganhassem palco e holofotes. A rigor, antes mesmo de a Assembleia-Geral das Nações Unidas proclamar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948.
Na ocasião, Margarida tinha 25 anos e já atuava com saúde comunitária e oficinas de puerpério na zona rural de Campinas (SP), onde morava. Seu marido, Lucien Genevois, era diretor da Rhodia e, desde a Segunda Guerra, superintendente da fazenda comprada pela transnacional francesa a fim de cultivar cana-de-açúcar e produzir combustível (e outros insumos) para abastecer as fábricas da empresa, em Santo André (SP).
Conhecer os índices de mortalidade infantil e materna na fazenda, resultado da falta de instrução e de acompanhamento médico pelas famílias, motivou Margarida a promover uma cruzada pela atenção primária à saúde de gestantes, mães e crianças na região. Foi seu primeiro engajamento, sua primeira militância orgânica na luta por justiça social e cidadania. Não parou mais.
Na segunda metade dos anos 1960, essa experiência em Campinas abriria portas para que Margarida, já radicada em São Paulo, fosse estudar sociologia (depois dos 40 anos) e organizasse com uma amiga um centro de formação cultural e promoção social batizado de Véritas.
No começo dos anos 1970, receberia o convite para se juntar à Comissão Justiça e Paz de São Paulo, criada por Dom Paulo e liderada por advogados como Fábio Konder Comparato, José Gregori e José Carlos Dias, voltada, num primeiro momento, para defender e representar presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos.
100 anos
O centenário de Margarida será celebrado no sábado 11 com uma recepção a portas fechadas para poucos amigos em Higienópolis, bairro onde mora desde os anos 1960. Dois dias depois, na segunda-feira (13), receberá os cumprimentos — amplos, gerais e irrestritos — numa missa a ser celebrada às 18h por Padre Júlio, na paróquia dos dominicanos, em Perdizes.
Margarida teme a aglomeração, lamenta que ainda não seja o momento ideal para abraçar e beijar todo mundo, como gostaria, e reza para que ninguém pegue covid nesses encontros.
"Tomei a quinta dose, mas e as outras pessoas? Não sei se estão todas protegidas". Digo para ela não se preocupar com isso, que até nos ônibus e nos metrôs já liberaram o uso da máscara, que a ocasião é especial e que ela tem direito de curtir o momento. Sem grilo, saca? Ela vacila, sorri. Não consegue. Pensar no outro é sua bênção e sua mania.
Aos cem anos, Margarida se soma ao time dos anciãos, os sábios da aldeia, um grupo que, no Brasil, já reuniu craques como Oscar Niemeyer, Tomie Ohtake e Lygia Fagundes Telles. Máximo respeito.
São mais anos de estrada do que ela poderia esperar, mas ainda pouco diante do tanto que a queremos por perto para aprender com ela — nós, os que acompanhamos sua militância em defesa da democracia e dos direitos humanos, dois conceitos que, na sua gramática particular, deveriam ser tratados como sinônimos ou, pelo menos, andar sempre de mãos dadas.
É que a luta não acaba. Margarida sabe. A luta é todo dia. "O que Deus ainda quer de mim?"
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