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Sem decolar, parceria Brasil-Ucrânia para foguete acaba virando ponte no MA
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Brasil e Ucrânia carregam em seu histórico diplomático recente a frustrada criação de uma empresa que pretendia lançar foguetes com satélites do CLA (Centro de Lançamentos de Alcântara), no Maranhão. Ao todo, do lado brasileiro foram gastos R$ 483 milhões, sem que nada tenha sido mandado para o espaço.
A empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS) acabou 14 anos depois sem foguetes nem satélite, mas deixando um legado: o material não usado foi doado à Prefeitura de Alcântara, que hoje usa areia, manilha e brita cedidos para fazer pontes em povoados e restaurar ruas na cidade.
Para entender como tudo começou, é preciso voltar a 1995, quando houve a assinatura de um memorando de entendimentos entre os dois países para lançamento do Cyclone-4 a partir de Alcântara. O acordo entre os países, porém, só foi assinado em 2003, no "Tratado sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamento Cyclone-4".
O acordo resultou na criação, em abril de 2005 da ACS. E para abrigar o lançador de foguetes, foi destinada uma área de quase 500 hectares no CLA. A pedra fundamental para as obras foi lançada (com pompa) em 2010.
"A base incluirá as estruturas do Complexo Técnico, do Complexo de Lançamento e da área de armazenamento de propelente. A ACS deseja lançar o primeiro foguete Cyclone-4, a partir de Alcântara, em fevereiro de 2012", dizia nota oficial do governo em setembro de 2010.
O Cyclone-4 tratava-se de um veículo lançador capaz de colocar em órbita cargas de de 1.600 kg (em órbita de transferência geoestacionária) e 5.300 kg (em órbita baixa). O projeto previa que o investimento iria resultar em lucro para os países com a cessão da plataforma para lançamentos comerciais.
A ideia era unir a localização privilegiada do CLA (próximo a linha do Equador, onde é mais fácil e barato lançar veículos) à tecnologia ucraniana em produção de foguetes.
A parceria não vingou, e a empresa foi fechada em 2018 após um imbróglio que opôs os dois países (leia mais abaixo).
Sem ter destino para o material comprado, a ACS acabou fazendo doação à Prefeitura de Alcântara. "O prefeito Padre William conta que há diversos povoados no município onde manilhas, areia e brita poderão ser utilizadas. E que em outros é possível fazer algum benefício como uma praça, uma calçada", diz texto da administração municipal, em 9 de outubro de 2021, em postagem no Instagram.
A coluna conversou com o vice-prefeito da cidade, Nivaldo Araújo (Pros), que afirmou que o material está ajudando a cidade e mandou imagens de três obras que contaram com material doado pela ACS.
"A primeira foi no povoado Brito [onde foi feita uma ponte], a segunda foi no povoado Mamuna [onde foi feita uma passagem] e a terceira [muros de arrimo e saias] foi no bairro Vila Airton", diz.
De promissora a frustrada
Segundo Ronaldo Carmona, professor da Escola Superior de Guerra e da pós-graduação de engenharia aeroespacial da Ufma (Universidade Federal do Maranhão), a cooperação parecia promissora. "Eram dois países com nível de desenvolvimento tecnológico aproximado. A Ucrânia herdou o aparato e um pouco do legado da URSS na área especial era um destaque. Mas não deu certo, e foi de promissora a frustrada", diz.
O objetivo da cooperação era desenvolver um lançador de alta capacidade, "como aqueles tradicionais soviéticos". "Foi uma tentativa de abreviar o caminho no aspecto do desenvolvimento tecnológico. Se você se alia a quem já possui, incorpora conceitos, técnicas, visões do estado", explica.
Segundo Carmona, a parceria acabou por diversas razões, que vão desde causas orçamentárias a erro estratégico, sobretudo. Entretanto, ele diz que durante o programa, a Ucrânia não teria demonstrado ambições com a ideia.
"Antes mesmo de 2014 [quando caiu o governo ligado a Rússia], os presidentes ucranianos tinham projetos de vinculação a outro bloco de poder. O Brasil sentiu essa falta de ambição estratégica da ucraniana, já que o objetivo deles [após 2014] era o de se somar ao projeto europeu", afirma.
Segundo ele, porém, nem tudo se perdeu. "Não se perdeu a parte subjetiva, porque aprendemos como deve ser o nosso padrão de relacionamento com os outros. E no caso objetivo, está aberta agora uma licitação — uma segunda — no sentido de licitar a antiga área da binacional, e lá já tem algum tipo de infraestrutura. Isso vai facilitar uma área de lançamento comercial privados de Alcântara", diz.
Para ele, a experiência mostra o "enorme potencial" do CLA, não só para lançamentos mas também para o estabelecimento de uma base industrial de alta capacidade tecnológica na região. "É um instrumento importante de desenvolvimento regional. Nós precisamos desconcentrar o programa de São José dos Campos, não podemos ter os ovos em uma só cesta", afirma, defendendo que o país invista mais na área.
Precisamos ter um programa espacial completo. Temos que considerar que a questão do espaço é cada vez mais um assunto do nosso cotidiano. Os satélites impactam diretamente a vida na Terra. Não tem como ficar fora. O Brasil tem condições de desenvolver um projeto robusto e ajustado a suas necessidades"
Falta de acordo
Em 2018, a pedido do Congresso, uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) constatou que, no período de 2007 e 2016, o governo brasileiro investiu R$ 483 milhões (fora os gastos ucranianos).
"A fiscalização deixou claro que a comercialização de lançamentos por meio do Cyclone-4 seria inviável enquanto um Acordo de Salvaguardas não fosse assinado. O acordo é o instrumento internacional comumente utilizado para impedir que empresas de um país acessem, sem autorização, tecnologias de ponta de domínio de outra nação", disse o tribunal.
O acordo de salvaguarda foi assinado apenas março de 2019, já na gestão de Jair Bolsonaro (PL). Somente por meio desse acordo é que satélites que usem algum tipo de tecnologia americana poderiam ser lançados no CLA.
"Há indícios de que o veículo lançador ucraniano incorpora peças e componentes estadunidenses. Ademais, vale registrar que 80% dos satélites comercializados no mundo detêm peças norte-americanas e os Estados Unidos são o país com mais patentes no mercado aeroespacial", afirmou em seu voto o ministro e relator do processo no TCU, Marcos Bemquerer Costa.
Uma peleja ainda sem fim
Antes de fechar a empresa, Brasil e Ucrânia tiveram um atrito com a denúncia do governo brasileiro ao parceiro ucraniano em 2015. No jargão diplomático, denúncia é o ato de um país informar ao outro que não concorda com os termos de algum tratado em vigor e pede para que a parceria em questão seja encerrada ou reformada.
A alegação do governo brasileiro é que houve desequilíbrio na equação tecnologico-comercial. Já o governo da Ucrânia lamentou a decisão e declarou, à época, que faltou vontade política e que houve descumprimento de obrigações financeiras por parte do Brasil.
A empresa só foi oficialmente fechada quatro anos depois, em abril de 2019, quando teve início o processo de inventariança, que é é análise e conhecimento do patrimônio que ficou para o país — que ainda está em fase de finalização
Em março do ano passado, o presidente Bolsonaro ampliou por mais um ano o prazo para o término da inventariança (que agora deve ser concluída até 27 de abril deste ano).
A coluna procurou Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (que inclui a AEB, Agência Espacial Brasileira) com o questionamento sobre o andamento desse processo e o custo total da parceria, mas não teve resposta.
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