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Após 53 ações, nenhum agente foi condenado por crimes na ditadura no Brasil
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Nos últimos 10 anos, o MPF (Ministério Público Federal) ingressou com 53 ações criminais pedindo a condenação de agentes que cometeram crimes durante a ditadura militar, mas até hoje ninguém foi punido. Apenas um ex-delegado de São Paulo chegou a ser condenado, mas a decisão, em 1ª instância, foi revogada em fevereiro (veja mais abaixo).
Os crimes cometidos por militares voltaram às manchetes dos principais veículos de comunicação após gravações do STM (Superior Tribunal Militar) explicitarem como a tortura era uma regra no regime. As sessões oficiais, inclusive as secretas, realizadas entre 1975 e 1985, resultaram em mais de 10 mil horas de gravações.
Casos envolvendo torturas, sequestros, assassinatos e ocultação de cadáveres já eram crimes conhecidos, demonstrados por historiadores e pelas investigações das comissões da verdade na década passada.
Um dos principais entraves para as ações não resultarem em condenações está na interpretação do judiciário para Lei da Anistia, de 1979, que previu a não punição de ativistas e agentes do estado por práticas de eventuais crimes durante o regime de exceção.
A interpretação da lei, porém, é questionada e foi alvo de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no STF (Supremo Tribunal Federal) em 2008, questionando o uso para impedir a punição de militares criminosos.
"É notória a controvérsia constitucional surgida a respeito do âmbito de aplicação desse diploma legal. Trata-se de saber se houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar", diz a petição.
A ADPF foi julgada improcedente em 2010, mas o recurso da decisão nunca foi apreciado. Está parado há mais de uma década no STF. O relator é o ministro Dias Toffoli.
Ontem (19), em resposta à coluna, a assessoria de imprensa do STF informou que o recurso da ação "não está incluído nas pautas divulgadas até o momento".
As ações
Desde 2012, o MPF entrou com 76 ações na Justiça.
Ações do MPF contra o estado ou agentes por crimes na ditadura:
- Criminais - 53
- Cíveis - 18
- Indígenas - 5
Dois estados concentram mais de 70% das ações criminais: 27 delas são do estado de São Paulo e nove, do Pará (onde atuou a Guerrilha do Araguaia).
Até hoje, o estado brasileiro foi condenado apenas fora do país: a CIDH (a Corte Interamericana de Direitos Humanos) deu duas sentenças contra o estado brasileiro: pelos crimes cometidos contra guerrilheiros do Araguaia (PA), em 2010; e pela não investigação do assassinato do jornalista Vladmir Herzog, em 2018.
Mesmo assim, as decisões foram apenas parcialmente cumpridas. A CIDH determinou, por exemplo, que as Forças Armadas brasileiras realizassem um ato pedindo desculpas oficiais e reconhecendo o erro nos casos —o que nunca ocorreu.
Demora e início de ações
A justiça de transição no Brasil se notabiliza pela demora em ser implantada. Passou a valer efetivamente em 1999, 20 anos depois da Lei da Anistia, quando o MPF recebeu uma representação do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro.
A denúncia foi sobre a interrupção, pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas-SP), dos trabalhos de identificação dos restos mortais exumados da vala clandestina do Cemitério de Perus, em São Paulo. Foi então que a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo deu origem ao primeiro inquérito civil sobre o tema no país.
A primeira ação criminal veio apenas em 2012. O denunciado foi o major do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura —que foi alvo depois de outras seis ações por crimes na ditadura.
Nome rotineiro nas denúncias de tortura, ele atuava no sudeste do Pará e norte do Tocantins e foi acusado de promover "mediante sequestro, a privação - em caráter permanente - da liberdade" de quatro vítimas em 1974, a quem causou "maus-tratos e grave sofrimento físico e moral".
No caso da guerrilha, o objetivo do grupo era arregimentar camponeses para lutar contra a ditadura. Os guerrilheiros, porém, foram alvo de ações violentas de membros do estado à época. Ao menos 70 morreram ou desapareceram nos anos 1970.
Além dessa, outras 52 ações criminais foram impetradas. A única condenação ocorreu em junho do ano passado, por decisão do juiz Silvio César Arouk Gemaque, da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo.
Ele condenou o então delegado Carlos Alberto Augusto —que atuava no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP)— a 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, desaparecido desde 1971.
Mas a punição foi desfeita. No recurso que deu entrada no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o ex-delegado alegou que o caso estava prescrito. Além disso, diz que não teria ficado comprovada a conduta dele e que não haveria "nexo de causalidade entre eventual conduta praticada e o resultado".
No acórdão, a 11ª turma do TRF-3 usou a Lei da Anistia, citando que o texto foi "fundamental no restabelecimento do Estado de Direito efetivo no Brasil". Assim, no dia 15 de fevereiro de 2022, foi decretada a extinção da punibilidade do ex-delegado.
"Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível, com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos, impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970", diz a decisão.
Lista extensa
Na lista de acusados de crimes pelo MPF, há nomes conhecidos pelas rotineiras denúncias de repressão contra opositores da ditadura, como o do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra —a quem o presidente Jair Bolsonaro chama de "herói".
Ustra, que morreu em 2015 sem punição pelos crimes dos quais havia sido acusado, foi denunciado em sete ações por vários crimes durante a ditadura.
A coluna leu parte das ações contra ele, que listam diversos crimes. Em uma delas, a investigação relata o sequestro e tortura da grávida Crimeia Alice de Almeida, violentada entre os dias 29 de dezembro de 1972 e 22 de janeiro de 1973.
Com sete meses de gestação, diz a ação do MPF, Crimeia sofreu sessões de espancamentos, choque nos pés e nas mãos, foi alvo de palmatórias e ameaçada de tomarem o seu bebê caso nascesse "branco, saudável e do sexo masculino".
A procuradora regional da República e coordenadora do grupo de trabalho Memória e Verdade da PFDC, Eugenia Gonzaga, é uma das precursoras da justiça de transição e vive na pele a dificuldade de obter punições a agentes de estado pelos crimes na ditadura.
Gonzaga afirma que a divulgação dos áudios do STM pode ajudar a justiça a revisar o entendimento —para ela equivocado— que impede a punição de agentes do estado que cometeram crimes, além de demonstrar a verdade sobre as violências cometidas no regime.
"Esses fatos vêm à tona mostrando o que a gente já sabia, mas podem sensibilizar muitas pessoas que não acreditam", diz.
Para ela, o momento é oportuno para novamente pressionar o STF a julgar o recurso sobre a ADPF. "Esses áudios mostram que ainda tem muita prova para aparecer, não se pode falar que passou o prazo. A demora no julgamento da ADPF já é uma vergonha. No ano passado, a gente fez uma campanha chamada 'reinterpreta já', mas eles não deram nenhum valor", lamenta.
Ela conta que nem sempre o entendimento para negar as ações do judiciário foi a Lei da Anistia, mas também a prescrição dos crimes. "Aqui temos dificuldades de aplicar as normas internacionais que falam sobre imprescritibilidade. Mas, obviamente, no frigir dos ovos, muitos usavam também a Lei da Anistia", cita.
No caso, há um entendimento que crimes contra a humanidade não podem prescrever.
Chama a atenção hoje o extremo negacionismo que vivemos, com o [vice-presidente Hamilton] Mourão dizendo que Ustra é um herói; o Bolsonaro fazendo citações dele, como se não existissem os crimes, as torturas. E há pessoas que ainda acreditam que foram torturados e mortos terroristas, como se as forças fossem equivalentes --e nunca foram.
Eugênia Gonzaga, procuradora da República
Ela lembra que os áudios mostram que os militares torturaram meninas e mulheres grávidas. "Eram pessoas que não eram julgadas, eram torturadas e mortas. Existe muito espaço para termos mais ações. Isso só vai acabar quando o governo tiver coragem e abrir todos os arquivos. Nenhum governo abriu até hoje", finaliza.
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